Este texto é uma reflexão dissertativa para guiar Jorge Có, meu orientando de mestrado PPGAU, em preparação a abordagem da cidade companhia e os distritos industriais, parte de sua própria dissertação. Advirto que este texto não tem a intenção de estar ‘pronto’, é um diálogo com autores referenciais, ou ainda uma reflexão sobre seus escritos. As referências bibliográficas estão incompletas. Enfim este é um texto de trabalho (sem revisão de texto como todos aqui). Este está conectado a uma próxima postagem que trata da cidade, especialmente, a nostalgia do campo, a abordagem da superpopulação, da conurbação e a recepção ou repulsa da fábrica ou dos distritos industriais por parte de autores do século XIX-XX. A próxima postagem designa-se: “Cidade: problemas (campo e indústria) e projeções”.
Cidade: definição/ circunscrição/ delírio
Na clássica definição de Richard Sennett, uma cidade é "um assentamento humano em que estranhos têm chance de se encontrar”. Zygmund Bauman
Cidade é o lugar onde as pessoas (vindas de onde vierem) confluem ao aceitar obedecer a mesma lei. Esta noção é mais devedora do direito romano do que da polis (assentada na autoctonia) segundo Massimo Cacciari (CACCIARI, A cidade). Este filósofo explica que enquanto polis é o lugar e a sede para o cidadão (polites) precedendo-o; a civitas (romana) deriva de cives (cidadão), significa reunião de pessoas sob a mesma lei independente de suas etnias ou diferenças de religião (Idem, p. 10). Nesta definição o cidadão precede à estrutura física do lugar.
Outra noção aplicável nesse contexto, de acordo com Cacciari, é a de Roma mobilis, a cidade é móvel, pois, a civitas “não é um fundamento originário, mas um objetivo” a ser alcançado ‑ urb et orbi. Esta idéia de mobilidade associa-se ao crescimento. É próprio da civitas “de-lirar”, ultrapassar os limites (CACCIARI. A cidade, p. 16).
Peter Pal Pelbart (Vertigem por um fio. p. 45-46) recorre a Felix Guattari para sublinhar que “não há coisa mais exterior do que a cidade”. Ela existe em função da circulação, de entrar e sair, para fazer passar os fluxos ‑ “A estrada é o correlato da cidade” (DELEUZE & GUATARRI. Mil Platôs n. 5)
A cidade baseada na noção de civitas torna-se com o tempo “a união indissociável entre aquilo a que os romanos chamavam urbs (território físico da cidade) e civitas (comunidade dos cidadãos que a habitam)” ou, ainda, como “o pertencimento recíproco entre uma entidade espacial discreta (controlada, cordata) fixa e uma população” (CHOAY. Cidade Européia).
As modalidades do habitar (viver em, tomar, preencher, abraçar, ter, residir; ficar por um tempo) e morar (achar-se, encontrar-se, existir, permanecer) implicam duração e fixação. Segundo Cacciari, especialmente os europeus (predominantemente) acham que a cidade para fazer sentido deve recordar a polis. Deseja-se regressar a um lugar bem definido, a um território bem delimitado que permite trocas sociais, relações sociais ricas e participadas. Cacciari adverte: mas eram poucos os que podiam participar das assembléias e tomar decisões livres.
Ainda, de acordo com Massimo Cacciari se pode falar em cerca de 6 mil anos de civilizações urbanas, com seus ciclos, apogeus e crises. Contudo, assume-se, segundo ele, uma postura ambivalente em relação a cidade, esta “forma de vida associada”. Por um lado se concebe a cidade como lugar de encontro, reconhecida como comunidade, um lugar acolhedor para se viver em paz, por outro, a cidade também é entendida como uma “máquina, uma função, um instrumento” para se fazer negócios da maneira mais eficaz possível. Cacciari constata que se pede duas coisas diferentes à cidade ‑ que seja o lugar do ócio, lugar para morar, e do negócio, espaço do movimento, da comunicação, das transações.
Negócio advém de “sem ócio”, que por sua vez significa algo exercido sem recompensa. Negócio então significa (etimologicamente) “não sem recompensa”. Depois a palavra se ressemantiza e negociar se torna lidar com negócios; transacionar comercialmente; permutar ou vender por contrato, agenciar, diligenciar, pactuar; firmar e/ou celebrar (acordo, ajuste, contrato).
Desde Agostinho, na fase inicial do cristianismo, a idéia de vida negotiosa ou actuosa é aquela dedicada aos assuntos políticos ou públicos. Neste quadro, trabalho e labor mantém-se como atividades subalternas enquanto aos “convivas ociosos” é dado o desprezo, pois, "nada deixam de si em troca pelo que consomem" (Adam Smith apud ARENDT. A Condição humana. p. 97).
Ao se concordar com Georg Simmel que a cidade não é uma entidade espacial com conseqüências sociológicas, mas uma entidade sociológica que é formada espacialmente. Uma cidade converte-se num bem comum, portanto, não é um “agregado de propósitos individuais”, enfim, é “uma forma de vida com um vocabulário e uma lógica próprios e com sua própria agenda”. O contexto urbano é civil, “deve ser civil, a fim de que seus habitantes possam aprender as difíceis habilidades da civilidade.”. Esta do mesmo modo que a “linguagem, não pode ser ‘privada': Antes de se tornar a arte individualmente aprendida e privadamente praticada, a civilidade deve ser uma característica da situação social.” (BAUMAN, Modernidade Líquida).
O sentido institucional convencional de cidade varia de pais para pais e constitui um instrumento administrativo, jurídico e fiscal, segundo Françoise Choay. Segundo ela, na França uma população de pelo menos 2.000 habitantes aglomerados em uma só comuna constitui uma cidade (CHOAY, Cidade Européia). No Brasil, cidade é toda sede de município (conforme designa o IBGE); conforme indicação da ONU, a cidade deve possuir pelo menos um aglomerado de 10 mil habitantes.
Na França, etimologicamente, cidade em francês é ville advinda do latim villa, designando um estabelecimento rural autárquico que, freqüentemente, constituiu o núcleo das cidades medievais. Esta etimologia sublinha o pertencimento da cidade européia pré-industrial ao campo. Lewis Mumford ensina que, à exceção de alguns centros congestionados, a cidade da Idade Média não era simplesmente "no campo, mas do campo" (Mumford, apud CHOAY, Cidade Européia), e esta relação de interdependência é hoje recolocada em evidência por historiadores da cidade européia (Mohenberg apud CHOAY, Cidade Européia). Neste quadro a Revolução Industrial abala a associação original, ou seja, “a relação de complementaridade que unia a cidade e o campo”. De acordo com Françoise Choay o que abala a antiga associação entre campo e cidade não é uma revolução social:
“mas, a uma permanente evolução técnica [desde o Século XIX] que esta supressão [começa]. (...) o processo prossegue [atualmente] e tende a eliminar, em beneficio de uma entidade que não é mais nem cidade nem campo, os dois termos que, lógica e fenomenologicamente, existiam um pelo outro” (CHOAY, Cidade Européia).
No Brasil, como herança portuguesa, uma cidade é uma área urbanizada, que se diferencia de vilas e outras entidades urbanas através de seu estatuto legal. De modo que a população de uma cidade varia entre menos de uma centena de habitantes até milhões de habitantes (FRIEDMAN).
Não obstante descender da civitas, devido a forma como se institui juridicamente, tem-se estabelecidos os elementos construtivos que conformam a estrutura urbana que são premissas para a definição de vila e de cidade no Brasil colonial: a Casa de Câmara e Cadeia, o Pelourinho, (apenas para cidades) o Palácio do Governador (poder) e a Matriz ou Catedral (religião respectivamente vila e cidade), tendo primazia em relação às noções de urbanidade e de vida civil. Espaços das representações da Coroa Portuguesa ou do clero, que atuam como agentes modeladores das cidades coloniais (Pedro de Almeida Vasconcelos, I Seminário do Urbanismo Colonial no Espírito Santo)
Maurício Abreu observa a transferência para o Brasil das praxes de controle territorial da metrópole portuguesa, o que viria a estabelecer na colônia “um sistema municipalista de base urbana e de raízes romanas, cujas manifestações materiais foram o arraial (ou povoado), a vila e a cidade” (ABREU, 1997):
“Dentre esses, apenas o arraial teve origem espontânea, resultando do agrupamento de famílias em algumas residências – chamadas fogos – que apresentavam certa contigüidade e unidade formal. Os demais surgiram sempre da ação direta ou indireta do Estado. As vilas resultaram da decisão de donatários e governadores, que tinham poder para criá-las, ou de ordem real para que se elevasse a essa categoria algum arraial. A criação de cidades, entretanto, foi sempre um atributo exclusivo da Coroa. Os donatários não tinham o direito de fundá-las porque ‘as cidades, perpetuando em si o antigo Município romano, de natureza independente, só assentavam em terras próprias alodiais” (ABREU, 1997: 213).
Fania Friedman ressalta a fundação intencional de um conjunto de localidades freguesias, vilas e cidades, incluindo aldeamentos regidos por ordens religiosas. Friedman enfatiza: “intenção entendida como projeto para o futuro, ou seja, planejamento”. No entanto, diz: há lacunas na historiografia acerca da organização e extinção de aldeamentos, freguesias, vilas, cidades e da definição de fronteiras e políticas de controle, isto é, os principais exemplos do “fazer lugares” (cartografia).
Fania Friedman constata inclusive que há "carência de sólida distinção conceitual entre poderes civil e eclesiástico” no que diz respeito, por exemplo, a circunscrição da freguesia, “confirmando a regra, freqüente, de a organização religiosa preceder à civil" (Lacombe apud FRIEDMAN, História Colonial, 2007).
A partir definição contemporânea (por parte do núcleo de cartografia do IBGE) têm-se municípios, distritos, regiões administrativas; subdistritos e zonas, área urbana, área rural, área urbana isolada. Os municípios são as unidades de menor hierarquia dentro da organização político-administrativa do Brasil, criadas através de leis ordinárias das Assembléias Legislativas de cada Unidade da Federação e sancionadas pelo Governador. Distritos são as unidades administrativas dos municípios, a sua criação é norteada pelas “Leis Orgânicas dos Municípios”. As regiões administrativas; subdistritos e zonas são unidades administrativas municipais, normalmente estabelecidas nas grandes cidades, citadas através de leis ordinárias das Câmaras Municipais e sancionadas pelo Prefeito. A área urbana é uma área interna ao perímetro urbano de uma cidade ou vila, definida por lei municipal. A área rural de um município é externa ao perímetro urbano. A área urbana isolada é uma área definida per lei municipal e separada da sede municipal ou distrital por área rural ou por um outro limite legal.
In. http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/cartografia/manual_nocoes/elementos_representacao.html
Ainda, segundo o setor de cartografia do IBGE, localidade é conceituada como sendo todo lugar do território nacional onde exista um aglomerado permanente de habitantes. Classificação e definição de tipos de Localidades (IBGE):
1 - Capital Federal - Localidade onde se situa a sede do Governo Federal com os seus poderes executivo, legislativo e judiciário.
2 - Capital - Localidade onde se situa a sede do Governo de Unidade Política da Federação, excluído o Distrito Federal.
3 - Cidade - Localidade com o mesmo nome do Município a que pertence (sede municipal) e onde está sediada a respectiva prefeitura, excluídos os municípios das capitais.
4 - Vila - Localidade com o mesmo nome do Distrito a que pertence (sede distrital) e onde está sediada a autoridade distrital, excluídos os distritos das sedes municipais.
5 - Aglomerado Rural - Localidade situada em área não definida legalmente como urbana e caracterizada por um conjunto de edificações permanentes e adjacentes, formando área continuamente construída, com arruamentos reconhecíveis e dispostos ao longo de uma via de comunicação.
5.1- Aglomerado Rural de extensão urbana - Localidade que tem as características definidoras de Aglomerado Rural e está localizada a menos de 1 Km de distância da área urbana de uma Cidade ou Vila. Constitui simples extensão da área urbana legalmente definida.
5.2 - Aglomerado Rural isolado - Localidade que tem as características definidoras de Aglomerado Rural e está localizada a uma distância igual ou superior a 1 Km da área urbana de uma Cidade, Vila ou de um Aglomerado Rural já definido como de extensão urbana.
5.2.1 - Povoado - Localidade que tem a característica definidora de Aglomerado Rural Isolado e possui pelo menos 1 (um) estabelecimento comercial de bens de consumo freqüente e 2 (dois) dos seguintes serviços ou equipamentos: 1 (um) estabelecimento de ensino de 1º grau em funcionamento regular, 1 (um) posto de saúde com atendimento regular e 1 (um) templo religioso de qualquer credo. Corresponde a um aglomerado sem caráter privado ou empresarial ou que não está vinculado a um único proprietário do solo, cujos moradores exercem atividades econômicas quer primárias, terciárias ou, mesmo secundárias, na própria localidade ou fora dela.
5.2.2 - Núcleo - Localidade que tem a característica definidora de Aglomerado Rural Isolado e possui caráter privado ou empresarial, estando vinculado a um único proprietário do solo (empresas agrícolas, indústrias, usinas, etc.).
5.2.3 - Lugarejo - Localidade sem caráter privado ou empresarial que possui característica definidora de Aglomerado Rural Isolado e não dispõe, no todo ou em parte, dos serviços ou equipamentos enunciados para povoado.
6 -Propriedade Rural - Todo lugar em que se encontre a sede de propriedade rural, excluídas as já classificadas como Núcleo.
7 - Local - Todo lugar que não se enquadre em nenhum dos tipos referidos anteriormente e que possua nome pelo qual seja conhecido.
8 - Aldeia - Localidade habitada por indígenas.
Tal como está no site. In. http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/cartografia/manual_nocoes/elementos_representacao.html
Esta listagem (para fins cartográficos) do IBGE não dispõe a definição de bairro, recorre-se à definição do Instituto Geográfico Cartográfico (1995) que designa
“parte ou circunscrição em que se divide a cidade; forma, em regra, um distrito que dispõe, por vezes, não somente de autoridades policiais, como também municipais; divisão antiga em que pode ter surgido naturalmente, a medida que, com a divisão do trabalho, as pessoas que militavam no mesmo ofício congregavam-se num mesmo local”.
Conforme estudos de Lewis Mumford, bairros são uma forma mais rudimentar de organização populacional muitas vezes sem estatuto legal. Nas cidades pré-industriais entre bairros há com freqüência algum grau de segregação ou de diferenciação (hierarquia) social. Bairros étnicos foram e são significativos em muitas cidades do mundo, em todas as épocas. A história e manifestações culturais dos bairros são um fator que contribui para o caráter distintivo de vizinhança e de coesão social.
De acordo com Kevin Lynch o bairro é um dos elementos que as pessoas utilizam para estruturar sua imagem da cidade De acordo com esta concepção, bairros são partes da cidade com dimensão expressiva, onde observadores identificam característica peculiar, particular (LYNCH, A imagem da Cidade). O conceito de Lynch refere-se a uma área percebida como relativamente homogênea em relação ao resto da cidade ou, ao menos, como possuindo características que distingam o bairro do resto do tecido urbano. Este critério visual, perceptivo converge com o critério administrativo de muitos municípios brasileiros que determina o conceito de bairro no Brasil, que se constitui de um espaço delimitado territorialmente, com características físicas homogêneas e de constituição histórica comum. O município de Aracruz em sua lei orgânica (ver data promulgação) designa distritos, bairros e regiões, mas não os define, assim acontece também com a lei orgânica do município de Vitória.
Algumas referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1989.
ABREU, Maurício de Almeida. “A apropriação do território no Brasil colonial”. In: CASTRO, I. E. de; GOMES, P. C. da C. & CORRÊA, R. L (orgs.). Explorações Geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
TAFURI, Manfredo & DAL CO, Francesco. Modern Architecture /1. N. York: Electa: Rizzoli, 1989.
CHOAY, Francoise. Destinos da cidade européia: séculos XIXI e XX. . Salvador. UFBA. Revista de Rua. Urbanismo e Arquitetura. n. 6. v. 1, 1996. pp. 8-21
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. Mil Platos. São Paulo Ed. 34 (volumes 1 e 5).
TAFURI, Manfedo. Projecto e Utopia, Arquitectura e desenvolvimento do capitalismo. Lisboa: Editorial Presença, 1985.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SILVA, Pedro. appla.netserviçointernetdaappla. 15 Março 2001
PELBART, Peter Pal. Cidade, lugar do possível. In. Vertigem por um fio. São Paulo: FAPESP: Iluminuras
CASTELLS, Manuel; A questão urbana. Paz e Terra, 2009 (4ª. Edição)
CHOAY. Françoise. A Regra e o Modelo. São Paulo: Perspectiva.
VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Os Agentes Modeladores das Cidades Coloniais. I Seminário do Urbanismo Colonial no Espírito Santo, 2010.
FRIDMAN, Fania. Cartografia fluminense no Brasil imperial. I Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica. Passado Presente nos Velhos Mapas: Conhecimento e Poder.. Parati, RJ, 2010
FRIDMAN, Fania. Freguesias do Rio de Janeiro ao final do Século XVIII. Anais do II Encontro Internacional de História Colonial. Mneme – Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v. 9. n. 24, Set/out. 2008.
Site do IBGE
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