terça-feira, 7 de agosto de 2007

A HISTORIA DA METODOLOGIA DO PROJETO


Texto de Giulio Carlo Argan
Tradução: José Eduardo Areias
Revisão: Profª. Drª. Regina Meyer.
Publicado pela Revista Caramelo 6. FAU/USP

Para mostrar o que é projeto, seria muito fácil responder: “é o método para a produção arquitetônica”. Esta resposta, no entanto, não estaria completa, porque sabemos muito bem que o projeto é já uma imagem realizada. É possível conceber um programa expresso com palavras, com cifras, ao passo que o projeto é já uma imagem feita visando uma execução técnica. A partir desta conotação fundamental, podemos dizer que o desenho, o projeto, é a relação direta entre uma atividade puramente intelectual e uma atividade manual. Entre uma atividade individual e uma atividade que é quase sempre uma atividade coletiva, o projeto não é somente um procedimento presente em todas as artes. Vocês sabem muito bem que desde o século XV, desde Leon Batista Alberti, as artes não são mais consideradas como diferentes atividades técnicas, mas como uma atividade intelectual única, que tem ramificações tais como a pintura, a escultura e a arquitetura. A idéia de projeto – a idéia de desenho, porque evidentemente todo projeto é desenho e todo desenho é ao menos virtualmente um projeto – leva necessariamente a considerar a amplitude desta idéia de projeto arquitetônico. É um pouco o símbolo ou o modelo de uma atividade de projeto, de uma vontade de projeto que se manifesta, não somente nas artes, mas em todas as atividades humanas, em toda a cultura. Sabe-se muito bem também que esta não é uma condição que existiu desde sempre. Há um corte muito preciso entre um período onde os projetos não eram separados como momento intelectual e execução, e um momento onde, ao contrário, houve esta distinção – meu jovem colega o disse – Brunelleschi!
Que acontece então? É que com Brunelleschi e a cultura humanista de seu tempo começa o que nós podemos chamar uma cultura, talvez uma civilização do projeto, que tem seu desenvolvimento maior no século XVIII, no Século das Luzes, quando toda a cultura é considerada como um projeto, um projeto de cultura – não há cultura que não seja um projeto de cultura – e a atividade de projeto é considerada como fundamental, estrutura para toda a atividade humana. Na política, o resultado evidente é a Revolução Francesa no final do século XVIII; na ciência, sabemos o que representam as mudanças de metodologia na pesquisa; na filosofia, não se tinha mais filosofia do universo, uma cosmologia e uma teologia, mas uma análise do pensamento humano.
Estamos em um momento onde devemos constatar uma crise do projeto na arquitetura, na produção industrial, em todas as atividades humanas, e nós devemos nos perguntar o que esta crise quer dizer, quais são as perspectivas de solução que apresenta. A cultura dos projetos veio depois de um outro tipo de cultura, que era uma cultura modelo. Há uma diferença notável entre a idéia de projeto e a idéia de modelo. Um modelo pode apenas ser imitado e a atividade que imita é uma atividade de reprodução, é uma atividade de reflexão; e temos por outro lado uma cultura que é transgressão e transgressão de si mesma. Então, nós podemos muito bem dizer que a cultura do projeto representa o fim de todo o principio de autoridade na cultura e o fim, por conseqüência, de uma concepção da arte como imitação, como mímesis. É portanto, o fim da arte clássica e o inicio da cultura moderna.
Procuremos saber quais são os componentes do projeto.
Nós temos uma primeira camada, um primeiro estágio, que é a analise e a critica do existente. É possível conceber uma idéia de projeto que não seja a critica de um tipo que exista, de tipos que existam. Talvez a única forma de projeto sem uma analise previa ou critica do que é existente seja a criação, a criação enquanto criação mais que humana, ao passo que numa concepção humanista e muito clara é absolutamente evidente que não se procura fazer um projeto que não seja um projeto de mudança de qualquer coisa que exista.
Uma critica – o que é uma critica? Dissemos que o projeto supõe uma analise critica do existente. Mas como se realiza esta crítica? É claro: dividindo em categorias.
Trata-se de começar a criar, a formar categorias do existente, distinções entre grupos de coisas existentes. Como sustentamos a infinidades das coisas que dispomos dentro da mesma categoria? É evidente: pelas afinidades, pelas características que são comuns a todos os fenômenos desta categoria. E, assim, iremos colocar de uma forma ainda embrionária o problema da tipologia. Quando dividimos o existente em categorias, estabelecemos uma primeira tipologia. Dividimos os tipos que têm características estruturais semelhantes, análogas, e que admitem variantes dentro de certos limites, que admitem por sua vez um certo leque de variantes. Dissemos que a cultura do projeto se opõe a uma cultura do modelo, vai além de uma cultura do modelo: qual é a diferença entre tipo e modelo? Nós a encontramos muito claramente apresentada no dicionário de arquitetura de Quatremère de Quincy. Era evidente um homem que estava ligado ao pensamento do Século das Luzes e que nos diz: um modelo é uma forma que devemos reproduzis tal qual ela é. Um tipo é uma estrutura que dá a possibilidade, não apenas a possibilidade, mas a necessidade de variantes, pois o tipo não tem uma determinação formal, nós devemos lhe dar esta determinação formal. Então, o tipo não é uma espécie de protótipo platônico mas, Quatremère é muito preciso sobre este ponto, é a dedução que fazemos de caracteres comuns entre os objetos de mesma categorias. Por exemplo, se queremos saber o que é o tipo do templo circular, devemos pegar todos os templos circulares que conhecemos, fazer uma comparação entre eles e isolar as características que salientamos em todos os exemplos tomados. Evidentemente, não se deduz um templo circular de uma certa quantidade de templos circulares, mas podemos deduzir constantes, tais como proporções, constantes no número de colunas, constantes nas relações entre as colunas e as outras partes da arquitetura; é uma analise que estendemos a todos as objetos. Mas o que é esta analise? Esta analise destrói a característica especifica de cada objeto para isolar uma função, uma tipologia que está sempre em relação com uma função. É sempre a idéia de uma função relacionada a um espaço, e que não tem uma determinação formal em si. É o momento que considero como fundamental no processo de projeto. É o momento onde a experiência histórica é inteiramente levada a cabo, terminada. Percorremos, por assim dizer, todos os templos circulares para isolar esta imagem de templo circular. Mas então, nos encontramos diante de uma forma que não o é (que n’em est pás une) ou, para melhor dizer, uma forma inteiramente vazia, e procura-se preencher este vazio por meio de uma hipótese, a hipótese de um templo circular que tenha todas as características de todos os templos circulares, mas ainda esta especificidade formal que cada templo circular tinha em si. Tem-se então um novo estágio do projeto, que é, depois da análise, a hipótese.
Mas muitas hipóteses são sempre possíveis, e então deve-se fazer uma comparação destas hipóteses, para finalmente eleger uma delas. Qual? A hipótese mais realizável, pois evidentemente, depois do projeto deve-se passar necessariamente à execução. Ao dizer amais realizável, não penso nas técnicas ou nos meios, ou nos procedimentos técnicos, nos materiais, mas penso sobretudo na realização de qualquer coisa, nos acabamentos. Eis porque pode ser escolhida por um arquiteto a solução mais utópica. Mas tomemos um exemplo somente: vocês se lembram, sem dúvida, que houve um 1919 na Alemanha o November-Gruppe, o Grupo de Novembro, com Taut, Gropius, Behrens. Eles apresentaram uma hipótese utópica – a Arquitetura Alpina – que era evidentemente a menos realizável e amenos provável dentre todas. Mas então eu lhes coloco ainda que numa Alemanha que estava numa crise terrível depois da derrota de 1919, a coisa mais necessária à cultura era a utopia, a ilusão utópica da qual nasceu, como sabemos, o racionalismo. Gropius era um dos artistas, um dos arquitetos do November-Gruppe, e o criador do racionalismo alemão.



Procuremos então ver em síntese estas camadas ou estágios dos quais lhes falei. Nós temos primeiro os conhecimentos históricos; eles são necessários, evidentemente, se devemos fazer uma comparação: diante da tarefa de fazer um templo circular, devo conhecer toda a experiência constituída de templos circulares. Temos então uma primeira camada: o conhecimento histórico. Uma segunda, a análise; uma terceira, as críticas; uma quarta, a imaginação, e eis que, ao dizer a palavra imaginação, já estabelecemos uma relação com a primeira, o conhecimento histórico. O que é um conhecimento histórico? O que é historia? A historia é antes de tudo a memória. O que é a imaginação? A imaginação... o que é a memória? É a imaginação do passado. O que é a imaginação? É a memória da posteridade.
Eis então que se desenha completamente este ato, esta trajetória do projeto, qie é a mesma da memória À imaginação. Da memória à imaginação quer dizer: daquilo que nos lembramos àquilo que prevemos e desejamos.
Eis estabelecida uma outra relação entre – dentro do projeto – a memória, a crítica, a ideologia, a previsão da posteridade. Um problema surge imediatamente: será que estamos autorizados a projetar? Quer dizer, quando se projeta faz-se alguma coisa agora para uma posteridade que está talvez um pouco distante. Mas será que tenho o direito de determinar as condições de existência de gerações futuras? Quando se examina a crítica que se faz hoje, como por exemplo na produção cultural da sociologia americana, temos uma discussão sobre a cientificidade do projeto; afirma-se: o projeto não tem nada de cientifico, pois sabemos muito bem que as coisas se darão de um amaneira totalmente diferente do modo como as projetamos. É bem verdade. Mas nós todos, quando projetamos, temos a necessidade de pensar a posteridade para a existência de hoje, para dar à existência de hoje uma dimensão a respeito do futuro.
Mas então vocês compreendem muito bem que o projeto não é algo que se saiba, que se imponha: o projeto é um projetar contínuo; não é possível conceber a idéia de um projeto que seja côo uma espécie de gravura de cobre, sobre a qual pode-se imprimir uma folha de papel da qual se obtêm uma imagem. O projeto é um projetar contínuo, é exercer sempre uma crítica sobre a existência, e supor qualquer coisa de diferente e evidentemente melhor. Eis porque se pode muito bem dizer que todo o projeto pressupõe uma idéia de valor. Sem que se tenha uma idéia de valor, não se pode projetar; mas se colocarmos uma idéia de valor como meta à qual queremos atender, então está claro que não podemos conceber o projeto sem uma finalidade, sem um finalismo, sem uma concepção teleológica da existência. Vocês sabem muito bem que na historia da época moderna, passou-se de uma fase durante a qual a finalidade última do homem era a salvação, a redenção, o paraíso, para uma outra onde se procura ter o bem-estar sobre a terra. Pode-se dizer que o projeto é um finalismo que podemos qualificar como laico, porque ele procura realizar o valor dentro do horizonte da existência e ano além deste.
Mencionamos um problema importante, o problema do valor, e vocês sabem muito bem que, hoje, a idéia e de valor foi colocada em crise. A mesma crise que a idéia de projeto, evidentemente, porque, se não se pode conceber um projeto sem uma idéia de valor, não se pode conceber o valor sem o projeto de alcançá-lo. Como podemos justificar esta idéia de valor? Eu não quero entrar aqui em uma discussão filosófica, e me limito a dizer que o valor não é algo que está ligado Às coisas, mas uma atribuição de significação que se dá Às coisas. Se não compreendo nada de pintura, se sou completamente alheio À pintura e se me mostram um quadro de Rafael ou um quadro de Cézanne, isso não terá nenhum valor para mim. Isso só assume um valor no momento em que seja eu quem lhe atribui um valor; assim, podemos dizer que o projeto é um procedimento de valorização. Um processo, uma sucessão de ações de valorização.
Imaginemos que se possa realmente conceber um projetar continuo, sem fim: mesmo assim, este projeto deixa traços. Se ele não deixasse traços, ele não teria nenhum significado, nenhum valor; mas estes traços, o que são? Como os chamamos? Objetos, é claro. Uma casa foi projetada, é um objeto. Uma mesa que foi projetada, é um objeto. Nós já falamos (e são palavras muito semelhantes) de um projeto que produz objetos. É uma dedução muito evidente, que se verifica neste tipo de verbalização projeto/objeto. São palavras que têm raiz comum, o que determina uma primeira ligação: projeto/objeto. Gostaria de lhes perguntar se seria indiferente dizer coisa em lugar de dizer objeto. Não. Se eu digo que um projeto produz um objeto, compreende-se muito bem o que eu quero dizer; mas se eu dissesse que o projeto é uma coisa que produz outra coisa, vocês não me compreenderiam: uma coisa pode ser uma panela, por exemplo. Portanto, o objeto é outra coisa. O objeto é qualquer coisa que é definida por, e ao mesmo tempo define o sujeito. E, assim, acrescenta-se uma terceira palavra: projeto-abjeto-sujeito. Mas o que é o sujeito? O sujeito é aquele pelo qual uma coisa é um objeto. Um objeto é uma coisa que é realizada, feita, organizada por um sujeito. E ao mesmo tempo em que defini a individualidade do objeto, o objeto definiu minha individualidade. Eu sou um indivíduo enquanto sujeito, sujeito enquanto penso um objeto. O objeto existe porquanto tenha sido projetado. E, então, dizemos que o projeto é o procedimento pelo qual se estabelece uma relação, e uma relação dialética entre objeto e sujeito.
Vocês estão aqui em uma escola de arquitetura para tornar-se arquitetos, mas o que vocês farão tornando-se arquitetos: estabelecer relações entre objetos – as casas das quais vocês farão os projetos – e os sujeitos que serão os que viverão nas casas que vocês terão projetado. Sua tarefa é evidentemente estabelecer as melhores relações possíveis de modo que o individuo sinta-se inteiramente livre, que o sujeito seja livre dentro do objeto, seja libertado pelo objeto, quer dizer, que haja entre o objeto e o sujeito uma relação de integração em lugar de haver uma relação de alienação.
Agora que estabelecemos esta espécie de trindade ou tríade projeto-objeto-sujeito, dizemos que esta trindade é a trindade de nossa cultura enquanto cultura não dogmática. Dizendo não dogmática, eu digo critica; dizendo crítica, eu digo laica; dizendo laica, eu digo liberal, dizendo liberal, eu digo democrática. Eis porque o projeto é um procedimento que tem seu valor, sua significação dentro de uma cultura racionalista e democrática, e que não tinha absolutamente o mesmo significado em uma cultura da autoridade e do poder. Nós temos o exemplo, o grande exemplo de Gropius e da Bauhaus, que, como se sabe, foi a maior escola de arquitetura da primeira metade do século e ao mesmo tempo a primeira escola fundada sobre uma estrutura democrática, que estabelecia relações democráticas entre os mestres e os estudantes, tendo sido concebida como uma sociedade de informação, como uma sociedade real que realizava de uma maneira contínua seu projeto de desenvolvimento.
Neste momento, creio que devemos nos deter um pouco, como eu lhes disse antes, sobre o argumento do nosso colóquio “projeto e a história”. Um projeto é sempre um procedimento de reutilização. Nós não podemos não ter consciência de uma realidade dentro da qual nos encontramos.
Para falar deste processo de reutilização, em lugar de fazer filosofia, recorrerei a um poeta: Mallarmé, por exemplo, deu um som novo à palavra “atributo”. Não se pode ter medo de considerar a sociedade na qual trabalhamos, como um tipo de atributo que deve sempre mudar a significação das palavras. Nós o sabemos desde Cassirer, com sua filosofia dos símbolos, que são as palavras que criam as coisas, e não as coisas que criam as palavras. Nossa tarefa enquanto pessoas que fazem projetos, não somente de arquitetura, mas projetos todavia, é de dar sempre novas atribuições de valor: quando a obra de arte que estava numa igreja ou no palácio de um rei torna-se objeto de museu, é evidentemente uma nova atribuição de valor.
Esta atribuição de valor nos coloca problemas bastante sérios, problemas de método, porque nós trabalhamos, nós existimos em cidades, as cidades que são produtos das técnicas urbanas, são resultados, artefatos que podemos considerar da mesma categoria que as obras de arte. A própria cidade é idealmente uma obra de arte.
Agora, coloca-se um problema que eu gostaria de chamar de restauração de projetos. Todo arquiteto que trabalha com uma deontologia de sua disciplina, e não para ser simplesmente o técnico da especulação básica, todo arquiteto que trabalha com uma consciência de sua disciplina, trabalha com a finalidade de inserir um texto em um contexto: ele deve procurar esta relação que dá coerência, que realiza uma coerência. Imaginemos, por exemplo, um filólogo que procurasse restabelecer um texto grego do qual perderam-se muitas palavras: não seria possível inserir uma palavra que tenha contexto; deve-se inserir uma palavra que tenha uma significação.
A cidade é evidentemente um contexto, isto é, um conjunto de textos que realiza um contexto. Devemos reconhecer então que esta crise da qual falávamos, a crise do projeto, a crise do valor, a crise da finalidade, é também a crise da cidade, e estamos em um momento onde a crise da cidade tem características muito graves pois, como se sabe, ao mesmo tempo em que criticamos a construção moderna, a cidade e a civilização industrial como estando fora das medidas humanas, temos diante de nós o fenômeno das cidades que nos últimos anos multiplicaram sua população até chegar a dez, quinze milhões de habitantes, o que quer dizer não poder organizar uma comunidade, o que quer dizer remover a razão de uma raiz histórica comum aos habitantes. São problemas que se colocarão sempre de um modo mais grave no futuro, e, então, devemos refletir ainda um instante sobre o problema da arquitetura e do urbanismo, que está ligado justamente ao problema do projeto da história.
Considera-se geralmente que o urbanismo é uma condição para a arquitetura. Pode-se ter uma solução urbanística satisfatória e mesmo boa, com uma má arquitetura. O que não é possível é o contrário. Não se pode ter uma boa arquitetura em um mau contexto urbanístico. Mas, sobretudo, chegamos hoje a uma situação onde não é mais possível estabelecer uma distinção entre arquitetura e urbanismo: não há mais arquitetura colocada (depositada) em um conteúdo urbano. O urbanismo deve tornar-se a arquitetura, ser interno ao projeto de arquitetura com uma dimensão nova e uma escala inteiramente nova, mas sempre projetando a história.
O que é que quer dizer fazer a história? A história é simplesmente (e quero dizer as coisas da maneira mais simples possível) conceber o passado como tendo resolvido as contradições da sociedade do seu tempo. Agora nós podemos ver o passado com as contradições resolvidas, e, se queremos fazer projetos que sejam coerentes com a idéia de história, coerentes com a idéia de crítica, a idéia de história e a idéia de crítica sendo idéias estruturais da cultura contemporânea, o primeiro passo é estudar, reconhecer as contradições da sociedade na qual vivemos.
O arquiteto pode fazer um projeto com sua reflexão sobre a história, procurar chegar a uma situação dramática, que contenha contradições flagrantes da sociedade, uma condição de equilíbrio. Evidentemente as condições de equilíbrio não são eternas, e eis porque as condições de equilíbrio não se realizam, mas é sempre possível procurar realizar uma eliminação das contradições. E procuramos resolver as contradições: é evidente que pensamos que todas as contradições da realidade têm uma solução, a qual trata-se de encontrar, de considerar possível, é por isso que o projeto não pode ser tão simplesmente um exame dos dados objetivos e um cálculo das resistências dos materiais ou do preço dos materiais em relação à disponibilidade financeira, mas um fator de intervenção ativa na realidade para resolver as contradições existentes.
A crise do projeto, isto é, o motivo pelo qual se diz que o projeto não é científico, que a história não é científica, que a historia não dá uma imagem verdadeira da realidade, é que a história é o domínio do provável. Penso que o fator de ser a história o domínio do provável é justamente o que pode nos assegurar que ela seja verdadeiramente o conhecimento do real; e realista, porque é sabido que na existência individual e social há muito mais de provável que de certeza. É verdade que a história é a ciência do provável – eu aceito esta definição; o que eu recuso é a idéia de que o provável não seja real.
O novo não-valor que opomos ao valor do projeto é o programa. Porque o programa não se configura como valor? Pelo fato do programa não ser o resultado de uma crítica; o existente poderia ser um projeto, mas é apenas um esquema de um desenvolvimento quase automático de uma tecnologia que é agora capaz de projetar, de projetar-se a si própria; assim, fica evidente que entre a idéia de programa e a idéia de progresso há uma antítese. Não é verdade que o projeto representa os detalhes no interior de uma linha geral, de um programa geral. A diferença é fundamental. O projeto exige, obriga a um controle sobre o executivo, e pode ser mudado. Quantos projetos de arquitetura. Cuja execução durou anos, algumas vezes séculos, submetendo-se a toda uma série de mudanças do projeto inicial. O projeto pode ser mudado como cada um de nós pode mudar seu comportamento segundo as circunstâncias do real. Mas o programa, ao contrário, não aceita ser mudado, porque o programa é uma espécie de automatismo que é alheio à vontade humana, e se diz que é o produto de uma tecnologia moderna. É o computador que programa. Mas eu não estou aqui para fazer polêmica contra os computadores pois isto seria idiota, isto seria como fazer a apoteose da bicicleta contra o automóvel ou o avião. Gostaria, ao contrario, de refletir sobre estes problemas de um automatismo, estas possibilidades de nova tecnologia de criar mecanismos capazes de se corrigir. Digo que o automatismo não é uma realização da consciência como o projeto, mas, ao contrário, é realização do inconsciente. São coisas que podemos ler hoje na maior parte dos textos sobre cibernética e outros da mesma categoria, que nos dizem: mas por que se aborrecer projetando, estudando, se há computadores que organizam tudo para a existência humana? Na Idade Média dizia-se: mas por que fazer as coisas, procurar realizar coisas, se há Deus que faz tudo por nós? A filosofia da comunicação de massa nos diz ainda que, hoje em dia, na realidade, não é necessário fazer projetos e nem mesmo ter utopias, pois a tecnologia contemporânea realiza muito mais rapidamente que a imaginação. É inútil ter imaginação se há um aparato tecnológico que produz imagens, e que nos oferece imagens para consumir em uma quantidade tal que a imaginação tenha uma atividade somente de recepção e não de atividade.
O problema está inteiramente aberto. É impossível saber o que se passará nos próximos dez, vinte, trinta ou quarenta anos, um século... O que nós podemos dizer é simplesmente que há duas possibilidades, dois caminhos, dois sistemas tecnológicos contemporâneos. O primeiro, seria o instrumento da civilização; o segundo, seria o instrumento de poder. Eis a antítese que hoje se coloca com uma gravidade excepcional, sobretudo, evidentemente, para os jovens que têm a existência à sua frente,e que devem saber que deverão trabalhar dentro de uma cultura e dentro de um sistema de informação de massa, e que este sistema de informação de massa pode ser a estrutura de uma civilização, isto é, o instrumento de uma civilização ou, então, o instrumento do poder. Creio que da resposta que se dará a esta questão irão depender muitas coisas, aquelas que chamamos a morte da arte, a morte do projeto, a morte da cidade, mas sobretudo aquilo que chamamos o fim dos valores. É ainda evidentemente possível fazer do sistema de informações,um sistema que não seja a decisão mecânica de uma cultura estabelecida, a imposição de uma cultura, mas que seja, ao contrário, um instrumento para organizar livremente a cultura. Aí está o dilema que temos hoje e que sobretudo vocês que são jovens terão diante de si para a posteridade. Desejo de todo o meu coração que a comunicação de massa, o sistema de informação de massa, a cultura de massa cuja realização está absolutamente segura e determinada – é impossível que isso mude pois já estamos em uma cultura de massa – mas espero que esta cultura de massa seja uma cultura da racionalização e da consciência, e não da inconsciência e do poder.

Giulio Carlo Argan


Este texto parte da transcrição literal dos registros de palestra que Giulio Carlo Argan proferiu no Departamento de Arquitetura da E.P.F.L. (École Polytechnique Fédérale de Lausanne), no dia 25 de maio de 1983, não tendo sido previamente redigido.
Por se tratar, então, de texto resultante de uma exposição direta, optou-se nesta tradução pela substituição de formas coloquiais por um estilo mais literário. Tal opção visou, sobretudo, criar uma miaos fluência para um discurso onde o tom coloquial é praticamente um recurso de expressão, o que não colocou diante da necessidade de um grande cuidado para evitar a perda do vigou do discurso original.
O original foi publicado pela École Polytechnique Fédérale de Lausanne, Departement D’Architecture Informations 61, Emregistrement de la Conférence du 25 mai 1983. L’Histoire dans la méthodologie du project, Giulio Carlo Argan.
O texto é parte de um trabalho de pesquisa de material de apoio a disciplinas do departamento de história da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, tendo sido levantado pela Profª. Marta Dora Grostein.

Uma entrevista final foi deletado neste post.

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