sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Camillo Sitte

Extrato de monografia de mestrado Camillo Sitte e Brasília, 1996. Programa de Pósgraduação Tecnologia do Ambiente Construído. EESC/USP. 1995. Clara Luiza Miranda

Camillo Sitte (1843-1903) com o livro “A Construção das Cidades segundo seus Princípios Artísticos”, de 1889, avalia o planejamento urbano do seu tempo, questionando os critérios técnicos e higienistas que os norteavam. Apoiado em análises de fragmentos de cidades antigas que conhecia (principalmente praças), destacava o seu caráter urbano e artístico, que se formava paulatinamente in natura e com o tempo.
O método do Sitte viajante conhecer essas cidades, pela melhor torre, pelo mapa fragmentado em quadrículas para melhor manuseamento, pela caminhada; deve ter fornecido subsídios para suas idéias de desenho urbano, que consistia em “ordenar os espaços em atrativos patterns e seqüências” (COLLINS e COLLINS, 1980, p. 68) e não numa articulação de edifícios isolados sobre uma malha viária. O desenho urbano de Sitte era tridimensional, movido pelo gosto e sensibilidade e não era uma questão de geometria ou economia.
A escolha do termo construção das cidades para o seu livro ao invés de planejamento ou projeto, mostra a perspectiva empírica de sua abordagem, enfatizando a síntese das artes produzida na prática artesanal, no lugar do projeto ou desenho prévio. Este partido teórico pode ser explicado por sua formação no meio do artesanato junto ao seu pai, e suas filiações teóricas a Gottfried Semper e Richard Wagner
Sitte nasceu em Viena, seu pai Franz Sitte, foi artista e arquiteto, que denominava a si mesmo de “arquiteto privado”, um estatuto profissional intermediário entre um mestre construtor medieval e um arquiteto moderno com formação acadêmica (SCHORSKE, 1979, p. 82). A família de Sitte tinha uma boa posição no ambiente profissional, porém, algo marginal no quadro do “renascimento cultural vienense do período”(COLLINS e COLLINS, Op. Cit., p. 14)[i].
A formação profissional de Camillo Sitte, seguiu pela Technische Hoschule, no atelier do arquiteto Heinrich von Ferstel; pela Universidade entre 1863-1868, onde cursou história da arte e arqueologia com Rudolf Eitelberger, que tiveram uma atuação importante na construção de edifícios no complexo Ringstrasse, de embelezamento e ampliação de Viena, executado a partir de 1959.
Segundo Carl Schorske, a cultura historicista universitária reforçou em Camillo Sitte a maneira que logrou preservar a cultura artesanal, conciliando com a formação acadêmica, foi a “educação promovida pelo estado e a propaganda acadêmica”(COLLINS e COLLINS, op. cit., p. 84).
O interesse de Camillo Sitte pelo planejamento urbano foi suscitado em parte, pelo seu professor Eitelberger e por seu esforço de compreensão das idéias urbanísticas de Gottfried Semper, que procurava sistematizar em escritos e conferências. Segundo George e Christiane Collins no entanto, a explicação da aparição do livro em 1889, deve ser atribuída as “mais secretas reflexões” de Sitte produzidas em viagens pela Europa(COLLINS e COLLINS, op. cit., p. 18-19).
Os Collins chamam atenção em seu texto, ainda, para o fato de que o interesse pelo planejamento urbano não se desligava de outro grande projeto histórico que ocupava Camillo Sitte: suas teorias sobre a síntese das artes e a arte como desenho total, influência de seu pai, de sua admiração por Richard Wagner e Gottfried Semper. Assim, a construção das cidades era pensada por Sitte, apenas como um aspecto do conjunto das artes (Id. Ibidem, p. 23) - gesamtkenstwerk.

Sitte e a cultura alemã
O pensamento de Camillo Sitte era profundamente alemão; dizia que “toda arte verdadeira devia ter em sua base no impulso nacional do povo” (Id. Ibidem, p. 24). Este nacionalismo de Sitte assentava-se no contexto da unificação alemã, na qual Richard Wagner exercia um papel de defesa da valores do artesanato, em contraposição ao capitalismo industrial. o tradicionalismo social e funcionalismo “wagneriano” de Sitte, apontava para o planejador urbano a função de “regenerador da cultura”. Sitte diz,
“Assim demonstramos que a construção urbana, quando concebida de modo correto, não é uma mera função burocrática e mecânica; constitui antes, uma obra de arte importante e expressiva, parte da mais nobre e genuína arte popular, cujo sentido é tanto maior for a falta, em nosso tempo, de uma síntese popular de todas as artes plásticas a serviço de uma grande obra artística nacional” (SITTE, 1992. p. 183).
No livro de Camilo Sitte, há concepções importantes sobre a atribuição profissional do arquiteto e da especulação do uso solo, que resultava numa espécie de divisão do trabalho nas partes da cidade. Para o arquiteto, as praças e ruas principais, onde era possível unificar as várias artes numa gesamtkunstwerk visual. Para a “valorização do terreno”, por “razões econômicas”, as áreas secundárias[ii]. Essa posição refletia a situação da gestão da cidades e a divisão social do trabalho entre engenheiros e arquitetos do período pós-liberal, ou seja, da segunda metade do século XIX.
Em relação ao desenho urbano, para Camillo Sitte o arquiteto devia aceitar trabalhar no fragmento - praças e ruas - aspirando a totalidade, a síntese das artes. Quanto aos planos urbanos, em sua visão os fundamentos deviam ser dados por um programa definido[iii]; esboço de uma imagem dos objetivos propostos para a parte da cidade a ser construída, seja praça, rua e edifícios públicos previstos[iv].
A concepção plano urbano, em termos da totalidade do loteamento prévio, era explicitamente repudiada por Sitte; que somente admitia, para o planejamento da expansão urbana: a determinação do sistema viário, priorizando as ruas principais, preservando as ruas já existentes[v].

Camillo Sitte condenava os princípios artísticos da transformação do Ringstrasse de Viena
O termo mais comum utilizado para descrever o Ringstrasse em 1860 era “embelezamento da cidade”[vi]. Termo que Sitte não devia concordar ; pois, seu livro “A Construção das cidades segundo seus Princípios Artísticos”, chamava atenção para a dimensão estética da cidade, situando-se criticamente com os princípios que baseavam o programa de remodelação do Ringstrasse. Discordava da ”disposição torpe do espaço ao redor dos grandes edifícios e pela forma de situar os monumentos públicos”[vii]. E, a partir da análise de espaços antigos, concluiu que:
“Apenas no nosso século matemático é que os conjuntos urbanos e a expansão das cidades se tornaram uma questão quase puramente técnica, e assim parece importante lembrar que, com isso, apenas um aspecto do problema é solucionado, enquanto o outro o artístico, deveria ter, no mínimo, a mesma importância”[viii]
Neste raciocínio os trabalhos desenvolvidos no Ringstrasse, começam a ser postos em dúvida, tendo como parâmetros não mais a natureza ou a higiene, mas a própria vida civil, que tinha como palco, este “legado pelo passado histórico da burguesia européia”: a cidade[ix].
Quando Camillo Sitte se refere à preservação de conjuntos urbanos antigos, se refere também aos costumes que abrigavam. Diz que na Itália, as principais praças das cidades mantiveram-se fiéis, ao modelo do velho fórum. Camillo Sitte argumenta que uma parte considerável da vida pública continuou a realizar-se nessas praças, mantendo tanto parte de seu significado público, quanto relações entre as praças e as construções que as circundam[x].
Sitte observou que há muitos séculos a vida popular vinha retirando-se das praças públicas no resto da Europa, sobretudo no período da cidade industrial:
“ (...) sendo quase compreensível que tenha diminuído tanto o interesse da grande massa pela beleza das praças, que acabaram por perder grande parte de seu sentido original. Decididamente, a vida dos antigos era muito mais favorável à concepção artística da construção urbana do que a nossa vida moderna, matematicamente compassada e onde o próprio homem acaba por tornar-se máquina”[xi].
O ambiente do Ringstrasse, era desprovido de sentido seja na tradição da construção urbana, num sentido estético segundo Camillo Sitte. A utilização indiscriminada de estilos históricos, como uma colagem desconexa do seu pano de fundo, para Sitte não dava conta das necessidades psicológicas e culturais das pessoas; para Wagner , não dava conta dos significados, que a formação da nova cultura urbana, secular e capitalista colocava.
Para Sitte, “a mania dos espaços abertos” desintegrava a arquitetura e meio ambiente, dificultando a apreensão pelas pessoas que transitam pelas ruas; criando uma neurose moderna - a agorafobia, medo de atravessar amplos espaços abertos.
A crítica de Camillo Sitte, de certo modo, vai de encontro as observações posteriores de Richard Sennet[xii], que diz que a morte do espaço público nas cidades modernas, deve-se à valorização do espaço privado, como conseqüência do esvaziamento do domínio da vida pública, que segundo ele delineia-se justamente no séc. XIX. O conceito de vida pública, então, começa a envolver uma vida social complexa e dispare, cuja a ordem ideal tinha com parâmetro a vida privada e intimista. Explica-se este fato, pelos conceitos de isolamento, separação, divisão que são problemas intrínsecos do capitalismo; que na etapa do consumo impõe o individualismo e dissolve o gregarismo.
Richard Sennet apresenta os termos “cidade” e “civilidade” dentro de uma mesma “raiz etimológica”; e diz que “a geografia pública de uma cidade é a institucionalização da civilidade”[xiii]. Para Camillo Sitte a inexistência de praças e edifícios públicos em uma cidade, considerando a vida pública nestes, a descredenciava como cidade[xiv].
“É preciso ter em mente que a cidade é o espaço da arte por excelência, porque é esse tipo de obra que surte efeitos mais edificantes e duradouros sobre a grande massa da população, enquanto os teatros e concertos são acessíveis apenas às classes mais abastadas”[xv].
Para Richard Sennet, Camillo Sitte concebia a comunidade dentro da cidade[xvi]. A advertência de Camillo Sitte sobre o desaparecimento das praças, com o respectivo esvaziamento do seu significado público, vinha do temor da vida da burguesia acabar transcorrendo somente sob portas fechadas.
Sitte e o planejamento urbano
Passagens do livro de Camillo Sitte resignam-se com os moldes da gestão da cidade pós-liberal, e, sugerem que concedia estatutos diversos ao arquiteto, ao construtor das cidades, e ao sanitarista[xvii]. Referindo-se ao projeto e construção em cidades de dimensões das metrópoles industriais, recomenda:
“.(...). o construtor de cidades, assim como o arquiteto, deve adequar sua próprias escalas à cidade moderna com seus milhões de habitantes”[xviii].
Sitte lamentava-se de que o quantitativo de recursos, conferidos à atuação dos arquitetos para construção de edifícios, era muito maior que os concedidos ao construtor de cidades, no que se refere as intervenções de caráter artístico[xix]. A constatação de Sitte era que a parcela da cidade a cargo do Estado constituía-se na verdade, uma “terra de ninguém”; e por outro lado, precisa as limitações de sua própria abordagem, que não confronta os mecanismos estruturais de gestão e valorização do solo urbano.
Os problemas que orientavam o planejamento urbano alemão, no tempo de Sitte, enfatizavam a saúde pública; questões ligadas a legislação do uso do solo, como zoneamento; posturas de uso do terreno como afastamentos; assim como a questão das tipologias habitacionais e dos locais de trabalho. Em compensação, o pinturesco conhecido dos parques ingleses (estudados sob o ponto de vista de drenagens e copiados nos seus “efeitos românticos”), foi introduzido pelos engenheiros na Alemanha, os mesmos tinham uma “indiscriminada confiança na linha reta”[xx]. O debate daquele momento era justamente sobre a forma curva ou reta das ruas.
O planejamento urbano se incrementou na Alemanha, através dos esforços combinados que atuaram em campos específicos, além de Camillo Sitte, Reinhard Baumeinster (1833-1917) e Joseph Stübben (1845-1936)[xxi]. A literatura que eles produziram tinha a consciência da necessidade de novas técnicas controle do crescimento urbano, fundava-se no entanto, em padrões organicamente assentados no desenvolvimento da iniciativa privada A cidade era pensada como uma matéria de método, de sistema; colocando os processos urbanos num patamar racional.
Os manuais técnicos ajudaram a fornecer indicações objetivas à uma expansão organizada[xxii], através de regras ao invés de soluções formais prefiguradas ou modelos. Enquanto, os manuais técnicos colocavam regras adaptáveis à diferentes condições urbanas; Sitte trabalhava com a idéia da individualidade dos espaços.
Baumeinster compreendeu o planejamento urbano como campo de experimentação científica[xxiii]. Produziu manuais básicos sobre os aspectos legais e técnicos da disciplina. Propunha o planejamento urbano em função do tráfego, e foi pioneiro na estruturação legal do zoneamento. Também Baumeister criticava o uso indiscriminado dos sistemas cartesianos. Recomendando o efeito estético das ruas curvas e a importância do fechamento por “paredes” das praças públicas[xxiv].
Stübben, publicou o Handbuch des Städtebaues em 1890, atualizado numa edição de 1924, contém suas contribuições a uma teoria estética do planejamento urbano. O livro de Stübben, divide-se em critérios práticos e estéticos; sendo que o interesse artístico revela, segundo os Collins:
“o desejo de muitos dos planificadores do seu tempo de chegar a leis ou regras com as quais pudesse tomar decisões artísticas”[xxv].
O livro de Sitte propõe-se a organizar “as leis da construção do belo urbano”[xxvi]. Sitte acredita que na relação entre edifícios e praças, os critérios de desenho, “não podem ser definidos com a mesma exatidão” que entre os elementos construtivos de um edifício. Contudo, uma definição aproximada, se fazia importante para ele, sobretudo “para a construção urbana moderna, onde a arbitrariedade da régua substitui o desenvolvimento histórico gradual”[xxvii].
Deste modo, segundo Francoise Choay, a partir de um método analítico de comparação entre cidades antigas e modernas, destaca dois aspectos importantes a “idéia artística de base”, e uma sucessão de diversos tipos de paisagens urbanas, “que balizam a história estética das cidades”[xxviii]. Sitte busca estruturas constantes - regras de dimensionamento de praças, relação entre edifícios e praças, fechamentos laterais, disposição de monumentos, árvores, arcadas, etc.

Bibliografia
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BATTISTI, Emilio, La Urbanística del Siglo XIX: Los planes de Barcelona e Viena, 1980. In PATETTA, Luciano, História de la Arquitectura, Antologia Crítica, Madrid : Hermann Blume, 1984, pp. 247-8
BENEVOLO, Leonardo. A Cidade e o Arquiteto, Método e História na Arquitetura, São Paulo: Perspectiva, 1984
BENEVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna, São Paulo: Perspectiva, 1985
CHOAY, Françoise. A Regra e o Modelo, sobre a teoria da arquitetura e do urbanismo, São Paulo: Perspectiva, 1980, (trad. Geraldo de Sousa, 1985)
CHOAY, Francoise. O Urbanismo, Utopias E Realidades, uma antologia, São Paulo: Perspectiva, 1965 (trad. Dafne N. Rodrigues 3. ed., 1992)
COLLINS, George R. e COLLINS, Christiane C.. Camillo Sitte Y el Nascimiento del Urbanismo Moderno, Barcelona: Gustavo Gili, 1965, (ed. castelhana, 1980)
FRAMPTON, Kenneth, História da Arquittura Moderna, São Paulo: Martins Fontes, 1997
LE RIDER, Jacques. A Modernidade Vienense, e as crises de identidade, Rio de JANEIRO: Civilização Brasileira, 1993 (trad. Elena Gaidano, 1992)
MARTIN, Camille. Ruas. 1918. In SITTE, Camillo. A Construção das cidades segundo seus princípios Artísticos. São Paulo: Martins Fontes, 1909 ( trad. Ricardo F. Henrique, em 1992)
RAMON, Fernando. Habitação, Cidade, Capitalismo, Teorias e Ideologia Urbanística, Porto: Escorpião, 1970 ( ed. portuguesa, 1977)
ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade, São Paulo: Martins Fontes, 1966 (trad. Eduardo Brandão, 1995)
SCHORSKE, Carl E.. Viena Fin-de-Siècle, Política e Cultura, São Paulo: Companhia das Letras, 1979 (trad. Denise Bottman, 1988)
SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público, as tiranias da intimidade, São Paulo: Companha das Letras, 1976 (trad. Lygia A. Watanabe, 1988)
SITTE, Camillo. A Construção das cidades segundo seus princípios Artísticos. São Paulo: Martins Fontes, 1909 ( trad. Ricardo F. Henrique, em 1992)
[i] COLLINS e COLLINS, Op. Cit., p. 14
[ii] Cf. SITTE, Op. Cit. p. 138
[iii] SITTE, Op. Cit., p. 131
[iv] Id. Ibid., p. 131
[v] Idem, p. 127; citação das decisões da Assembléia Geral da Liga das Associações de Arquitetos e Engenheiros Alemães, em Berlim, 1874.
[vi] Id. Ibid., p. 45
[vii] COLLINS e COLLINS, Op. Cit., p. 58
[viii] SITTE, Op. Cit., p. 15
[ix] RAMON, Fernando, Habitação, Cidade, Capitalismo, Teorias e Ideologia Urbanística, 1. ed. 1970, ed. portuguesa, 1977
[x] SITTE, Op. Cit., p. 25
[xi] SITTE, Op. Cit. , p. 113
[xii] SENNET, Richard, O Declínio do Homem Público, as tiranias da intimidade, 1. ed. 1974, ed. brasileira, 1989
[xiii] SENNET, Op. Cit. , p. 324
[xiv] SITTE, Op. Cit., p. 22
[xv] Id. Ibid., p. 118
[xvi] Idem, p. 358
[xvii] SITTE, Op. Cit., p. 94, e também, p. 116
[xviii] Id. Ibid., p. 116
[xix] Idem., P. 94
[xx] COLLINS e COLLINS, Op. Cit., pp. 31-3
[xxi] COLLINS e COLLINS, op. cit., p. 39
[xxii] idem
[xxiii] COLLINS e COLLINS, Op. Cit., p. 39
[xxiv] Id. Ibid., pp. 40-1
[xxv] Id. Ibid., p. 44
[xxvi] CHOAY, Françoise, A Regra e o Modelo, ed. francesa 1980, ed. brasileira 1985, p. 292
[xxvii] SITTE, Op. Cit., p. 60
[xxviii] CHOAY, Op. Cit., p. 292-3