quarta-feira, 22 de agosto de 2007

"Escolas" Inglesa e Francesa de paisagismo


Percepção e paisagem
O espaço mensurável da perspectiva renascentista buscava simetria, regularidade, proporcionalidade e possuía unidade, as partes guardavam relação entre si e com o todo. Esse espaço era isótropo e homogêneo, sem lugares e direções preferenciais.
Porém, o espaço natural é diverso, variável, sem forma definida nem limites precisos. O pinturesco, pintura de paisagem, seleciona e recorta um campo de visão marcado pela inusitado da variedade. O objeto da representação não é plenamente controlado, perde-se os limites e termos de comparação, permite-se a deriva do olhar (D’AGOSTINO, Mário- Revista Óculum n. 3).
Na pintura antiga, a natureza não está em primeiro plano ela é quase sempre pano de fundo. No séc. XVIII, no pinturesco, campos, jardins, vistas ganham qualidade estética, na poética do sublime (do incomensurável, das emoções, da natureza em seus perigos) os sentidos são habilitados para contemplar a natureza. A relação positiva com a natureza possibilita a capacidade de percepção de lugares como o campo e a beira mar.
As características do sublime foram definidas por Edmund Burke (1757) ao mesmo tempo em que Cozens definia o pinturesco. No pinturesco os artistas buscam a variedade das aparências, que dá sentido a natureza, não buscam o universal, mas, o particular e o característico. O sublime produz uma teoria da subjetividade das sensações. A natureza é apenas estimulante e não condicionante do pensamento. Tudo que incita as idéias de dor e perigo, tudo que seja terrível constitui a fonte do sublime.
O conceito de paisagem refere-se à natureza transformada pelo homem, está intimamente ligada à cultura. Tem a ver com a idéia de formas visíveis sobre a superfície da terra e com a sua composição. Paisagem de fato é uma maneira de ver, uma maneira de compor e harmonizar o mundo externo numa cena (COSGOVE).
A paisagem está associada a uma maneira de ver o mundo, como criação racionalmente ordenada, cuja estrutura e mecanismo são acessíveis a mente humana e ao olhar. Isso acontece quando a superfície terrestre estava sendo mapeada nas quadrículas de sofisticadas projeções de mapas, enquanto paisagens racionais estavam sendo construídas em Roma, Paris, Londres e ainda nas colônias americanas (COSGOVE apud CORREA & ROSENDAHL).
O avanço das técnicas agrícolas, o lucro com a terra, exploração de madeira para a indústria naval, florestas replantadas para produção industrial e por outro lado, o conflito ideológico (ilusório) entre modo de vida desejável no campo (salubridade, higiene) e vida sem qualidade na cidade. A arte, as transformações territoriais e técnicas de uso do solo e as modificações no gosto (estética) resultam:
· Na estetização do campo e da vida no campo
· Os jardins são associados ao mito do Éden, recinto de espiritualidade e símbolo de consumo.
· As paisagens tornam-se metáforas da natureza.
· A natureza se incorpora ao cotidiano, mas de reflexão espiritual para a promenade, o passeio.
O paisagismo como prática projetual articula conhecimentos de arqueologia, engenharia de estradas, pontes, de infra-estrutura urbana, hidráulica.
A escola francesa
André Le Nôtre (1613-1700) utiliza a geometria tridimensional, refletindo os estudos de matemática de Pascal e Descartes, além do aprendizado com seu pai jardineiro.
Os castelos, como Vaux-le-Vincomte, organizam um entorno que é um vigoroso cenário e expressa elegância e dignidade. O conceito de planificação dos jardins e cidade de Versalhes (Luis XIV) leva ao campo o impacto da urbanização. O jardim tratado como uma extensão visível captado de uma só olhada (vista). A diversidade das partes devia ser subordinada ao conjunto de escala monumental. A marcação dos pontos de vista é feita com blocos de vegetação laterais, que se constituíam em jardins secundários com experiências visuais alternativas de escala menor, mais íntima.
O precedente geométrico no paisagismo vem do trabalho do pai de Le Nôtre, jardineiro que compôs com radiais os Jardins dos Campos Eliseus e das Tulherias. E serve de referência para o plano de Washington (EUA) de Charles L’Enfant, 1792.





André Le Nôtre propõe um espaço de ordem globalizada, de geometria tridimensional, sólida articulado com o plano do solo bidimensional em eixos radiais no terreno em declive.
O jardim não é um receptáculo de objetos (esculturas) e edifícios, ele constitui uma unidade com eles, e ainda, o produto articula plasticamente entre vegetação, céu, terra e água.
Le Nôtre é o principal representante da escola francesa de paisagismo.



A escola inglesa
Escola inglesa tem como seu principal representante Lancelot Capability Brown (1716-83) que fez o paisagismo do Palácio Blenhein (figura abaixo). Na escola Inglesa a influência é da física de Newton e do Empirismo inglês, aliada ao desenvolvimento do pinturesco e de um gosto pessoal pelo campo.
Os jardins tornavam-se parques coesos de fácil execução e manutenção, assegurando a individualidade da arquitetura em relação à paisagem.





Stourhead, Século XVIII


A arquitetura que se colocava nos jardins ingleses era uma reunião de estilos de diversas origens. A paisagem resultante era da natureza expressa em sua individualidade, a bela natureza, com a qual os pintores rivalizavam e discutiam, a maioria deles ignorava as razões econômicas que levavam a aristocracia permanecer no campo e as tensões sociais causadas.
A mesmo tempo o cultivo de árvores satisfazia interesse econômicos de valorização de propriedades e atendia anseios estéticos de mitificação da vida no campo.
O paisagismo correspondia na arte a ideologia do progresso, melhoramento e embelezamento dos lugares habitados a investigação científica da natureza e ainda, incentivo das modalidades de percepção. O homem produzia sua própria natureza, por meios físicos: terraplanagem drenagem, irrigação, bombeamento de água, utilizando novo maquinário; pelo domínio da representação: compreensão das leis da física, da luz, cor, das perspectivas, pontos de vista, ainda do conhecimento das espécies de vegetação. (SEGAWA).
As paisagens distinguiam os lugares utilitários, de caráter produtivo, técnico e racionalizador dos lugares para fruição estética, de feição contemplativa e para o passeio, onde se manipulava as duras condições de vida no campo e se escondia as referências produtivas do olhar. (SEGAWA).


Bibliografia
SEGAWA, H. Ao amor do público, jardins no Brasil. São Paulo. FAPESP; Studio Nobel, 1996.
STAROBINSKI, J. A Invenção da Liberdade. São Paulo. Companhia das Letras. 1994
JELLICOE, G & JELLICOE, S. El paisage del hombre, la conformación del entorno. Barcelona. GG. 1995
CORRÊA, R. L & ROSENDAHL. Paisagem, tempo e Cultura. Rio de Janeiro. Ed. UERJ, 1998

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

O QUE É PAISAGEM?

por Aline Carneiro (conversações com a orientação Clara Miranda do Trabalho Final de Graduação de 2006/01 DAU/UFES)


"Antes de ser um repouso para os sentidos, a paisagem é obra da mente. Compõe-se tanto de camadas de lembranças quanto de extratos de rochas."
Simon Shama, 1996.


“Uma cidade não serve apenas de cenário (...) ela é território de confronto de olhares” , Henri-Pierre Jeudy, 2005.


ETIMOLOGIA
O termo paisagem originou-se do latim pagus (país), com sentido de lugar, unidade territorial. Nas línguas derivadas do latim surgiram termos como paisaje (espanhol), paysage (francês), paesaggio (italiano) etc. Nas línguas germânicas o termo land deu origem a landschaft (alemão), landscape (inglês), landsschap (holandês) entre outros com o sentido daquele termo em latim. Citado em A Paisagem e o Ensino da Geografia. Carlos Arthur Souza e Leandro Faber Lopes. Editora Universo.

A palavra landscape (paisagem) entrou na língua inglesa junto com herring (arenque) e bleached linen (linho alvejado) no final do século XVI, procedente da Holanda. E landschap, como sua raiz germânica, Landschaft, significa tanto uma unidade de ocupação humana – uma jurisdição, na verdade – quanto qualquer coisa que pudesse ser o aprazível objeto de uma pintura (SHAMA, 1996).



CONCEITOS
A paisagem possui uma dimensão morfológica – é um conjunto de formas pela natureza e pela ação humana; uma dimensão funcional – apresenta relações entre suas diversas partes; uma dimensão histórica – é produto da ação do homem ao longo do tempo; e uma dimensão espacial – ocorre em certa área da superfície terrestre. Mas além de tudo isso, a paisagem é portadora de significados, expressando valores, crença, mitos e utopias: tem assim uma dimensão simbólica. Ela pode ser, portanto, definida como uma área composta por uma associação distinta de formas, ao mesmo tempo físicas e culturais (CORRÊA & ROSENDAHL, 1998).

A paisagem, embora seja um dos termos mais antigos e de uso comum, talvez “se coloque entre aqueles sobre cujo significado seja mais difícil de alcançar um consenso”. (AMORIM,1998). A conceituação de paisagem aceita várias acepções, apresentando diversos significados ou sentidos, dependendo da abordagem que se adote.

Espaço do território que está ao alcance do nosso olhar, é a imagem apreendida visualmente, sendo em determinado lugar e momento, resultado de uma combinação dinâmica de elementos físicos, biológicos e humanos que, reagindo uns com os outros, fazem dela um conjunto único e inseparável, em constante transformação e evolução. A paisagem destaca-se por suas propriedades visuais, contudo sua análise para além da visualização é primordial. Seus aspectos também englobam características físico-ambientais, naturais, artificiais, culturais, simbólicas. Sua produção e transformação contínuas estão associadas, basicamente, a fatores sociais, os quais produzem e reproduzem, em diferentes contextos históricos, as contradições próprias aos interesses humanos.

A paisagem é um espetáculo de imagens e de metáforas, constituída por vários outros fatores.

Paisagem de fato é uma maneira de ver, uma maneira de compor e harmonizar o mundo externo numa cena. "Está associada a uma nova maneira de ver o mundo, como criação racionalmente ordenada, cuja estrutura e mecanismo é acessível à mente humana e ao olhar" (Cosgove apud CORREA & ROSENDAHL, 1998).

A PAISAGEM COMO TERRITÓRIO

A paisagem como território refere-se neste trabalho ao meio físico onde o homem vive e atua, onde desenvolve seu cotidiano e suas relações com as outras pessoas. É o instrumento da materialização da paisagem, o espaço que será apreendido, interpretado e compreendido como tal.
Território - O termo advém das ciências naturais (da botânica mais especificamente), sendo introduzido na Geografia por Friedrich Ratzel (1989), que o conceitua como uma parte da superfície terrestre, passível de apropriação por uma comunidade, por um povo e/ou pelo Estado. Sánchez (1992) revela-nos que desde 1897, em que Friedrich Ratzel publicou a obra Politische Geographie (Geografia Política), como uma “geografia dos estados, do comércio e da guerra”, a geografia passa a dispor de um novo ramo, que tomará como centro do interesse o Estado e as relações espaciais de poder. [...] Será assumido como campo do político na geografia todas aquelas relações sociais de domínio, controle e gestão que adotam uma forma pública, com séculos de conflito, as quais o espaço-território se faz presente como âmbito essencial destas relações.

Segundo Mário Ceniquel (Ceniquel apud MACEDO, 1992) a paisagem é o habitat do homem, onde ele vive. E esse habitat seria o campo real da existência da paisagem, o objeto que a designa, em meio aos significados metafóricos e simbólicos que a definem.

Todo território traz consigo, além dos acidentes geográficos, outras fronteiras delimitadas pelas características culturais, socioeconômicas, ambientais e de vida da população que nele vive. A ocupação do território é vista como algo gerador de raízes e identidade: um grupo não pode ser compreendido sem o seu território, posto que sua identidade sociocultural estaria inarredavelmente ligada a ele. O espaço possuindo uma carga emotiva, que faz parte da história de quem vive nele. Antônio Carlos Diegues (1998) escreve que em nenhuma sociedade as realidades naturais se reduzem somente aos seus aspectos físicos

A PAISAGEM NO TEMPO
Considerando um ponto determinado no tempo, uma paisagem representa diferentes momentos de desenvolvimento, sendo resultado de uma acumulação de tempos. Para cada lugar, cada porção do espaço, essa acumulação é diferente: os objetos não mudam no mesmo lapso de tempo, na mesma velocidade ou na mesma direção. A paisagem assim no espaço se altera continuadamente para poder acompanhar as transformações da sociedade. “A forma é alterada, renovada, suprimida para dar lugar à outra forma às necessidades novas da estrutura social” (SANTOS, 1991).

Nada em termos de paisagem pode ser considerado eterno, pois ela é dinâmica e de evolução constante. Um contínuo processo de alteração ocorre em função das necessidades da sociedade. Que em diferentes períodos de tempo poderá utilizá-la de diferentes maneiras, renovando, alterando ou até mesmo suprimindo-a, dando origem a novas paisagens. (Neves apud MACEDO, 1992).

Paisagem é transtemporal, juntando objetos do passado e do presente, uma construção transversal (SANTOS, 1996).


PAISAGEM, CULTURA E SÍMBOLO

As paisagens se mostram diferentes em função de quem as observa, dada a carga cultural simbólica, maneira e freqüência da observação. A paisagem não é apenas aquilo que se encontra defronte aos olhos, mas pelo que se encontra dentro das mentes, ou seja, somos capazes de ver aquilo que conseguimos interpretar.

Cosgove refere-se à paisagem como natureza transformada pelo homem, estando intimamente ligada à cultura e com a idéia de formas visíveis sobre a superfície da terra e com sua composição. Espaço percebido e construído simbolicamente, constituindo o aspecto visível do espaço, organizado por dados sensoriais e simbólicos do indivíduo. “É o conjunto de formas, que num dado momento, exprime as heranças representadas pelas sucessivas relações entre o homem e a natureza”, diz Milton Santos (1997).

O aspecto estético é cultural e está ligado ao nosso mundo particular de valores e conhecimentos, são muito pessoais, variando de indivíduo para indivíduo, o que leva a graus de valorizações atribuídos em função do gosto de cada um. Um alto valor conferido a uma paisagem em determinado espaço de tempo poderá ser alterado em outro momento, onde os padrões culturais e valores estéticos sejam diferentes.
A paisagem é, então, resultado de uma leitura e construção do sujeito que a lê, enquanto espaço físico e cultural, pensando-a como condensação simbólica e material, em busca de significação.

PAISAGEM: FRAGMENTOS DE TODO
“ A configuração interna de uma cidade só pode ser apreendida como um todo de maneira abstrata, a partir de sua própria invisibilidade. A adoção de um ponto de vista é uma maneira de constituir um ponto cego da percepção” (JEUDY, Henri-Pierre, 2005).

A imagem da paisagem se apresenta de forma fragmentada para cada observador, derivando de uma dimensão maior. Dependendo da escala nem sempre conseguimos visualizar sua totalidade com um olhar. Podemos apreendê-la à maneira de cartões postais, ou voltarmos para objetos isolados, mas, de um modo ou de outro, temos a tendência a negligenciar o todo. Mesmo as paisagens que se encontram em nosso campo de visão nada são mais do que frações do todo.
A paisagem sempre vai extrapolar e/ou superar a representação que cada pessoa faz dela. O ponto de vista (ou a modalidade do olhar), que inclusive depende da evolução da representação técnica das imagens, interfere na maneira de ver, conceber e representar a paisagem.
Geograficamente a paisagem também assume uma qualidade orgânica. Roberto Corrêa e Rosendahl Zeny em Paisagem, Tempo Cultura (1998), falam da relação genérica que a paisagem possui com outras paisagens, constituindo um sistema geral, sendo sua estrutura e função determinadas por formas integrantes e dependentes entre si. Podemos seguir Bluntschli ao dizer que não se entende completamente a natureza de uma área até que se “tenha aprendido a vê-la como uma unidade orgânica para compreender a terra e a vida em termos recíprocos".
A impossibilidade de apreensão do todo e a esta relação orgânica entre paisagens citada acima, do mesmo modo, podem situar a paisagem como um mosaico de imagens.

O ESPELHO DA PAISAGEM
"O mundo é que nos pensa, é o objeto que nos pensa” Jean Baudrillard
Da mesma maneira que nós, seres humanos interferimos na paisagem, ela também nos determina, influencia. É a relação com a reversibilidade do espelho, uma relação mútua. CORRÊA e & ROSENDAHL (1998) assumem essa posição quando compreendem a paisagem de dois modos: se por um lado ela é vista por um olhar, apreendida por uma consciência, valorizada por uma experiência, julgada (e eventualmente reproduzida) por uma estética e uma ética, gerida por uma política, etc. Por outro lado ela é matriz, ou seja, determina em contrapartida, esse olhar, essa consciência, essa experiência, essa estética, essa ética e essa política, etc. A paisagem é marca, pois expressa uma civilização, mas também uma matriz porque participa de esquemas de percepção, de concepção e ação, canalizando em um certo sentido, a relação de uma sociedade com o espaço e com a natureza e, portanto, a paisagem do seu ecúmeno. E assim, sucessivamente, por infinitos laços de co-determinação. Como marca, a paisagem pode e deve ser descrita e inventada.

Apoderar-se da imagem de uma paisagem significa, para Walter Benjamin , flagrar sua própria imagem. O mapa da memória do eu e o da paisagem se sobrepõem, não é possível desenhar um sem o outro. Diríamos com E. Hall que o homem e suas extensões constituem um sistema inter-relacionado. É um erro agir como se os homens fossem uma coisa e suas casas, suas cidades, suas paisagens, sua tecnologia, ou sua língua, fossem algo diferente.
A noção de reflexibilidade relaciona-se à ordem simbólica (JEUDY, 2005), no aspecto do símbolo que “representa sempre mais do que o significado evidente e imediato de algo”, que reitera a noção de transmissão de sentido, assim como a multiplicidade e circularidade dos signos.


CORRÊA, Roberto Lobato, ROSENDAHL, Zeny. Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998.
DIEGUES, Antonio Carlos. Ilhas e Mares: Simbolismo e Imaginário , 1998
JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.
SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo. São Paulo: Editora Hucitec, 1994.
SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Hucitec, 1982.
SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo: Nobel, 1985.

SANTOS, Milton. A Natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996.
SCHAMA, Simon. Paisagem e memória . São Paulo: Companhia das Letras, 1996

sábado, 11 de agosto de 2007

SÉCULO XVIII: NATUREZA, CONHECIMENTO E CRÍTICA

O século XVIII representa um esforço de fazer uma síntese entre “opostos”: Razão e emoção, objetividade e relatividade, unidade e multiplicidade. Tenta-se abrigar estas oposições como partes integrantes de um todo explicativo.
Os enciclopedistas dizem que importa se não conhecemos as leis que uniriam todas as coisas entre si (STAROBINSKI, 1994, p. 135), mesmo assim, eles organizam uma “árvore enciclopédica. D’Alembert diz “uma espécie de labirinto de caminho tortuoso em que o espirito se embrenha sem conhecer muito bem a estrada que deve seguir”.
Esta árvore propõe uma divisão geral dos conhecimentos segundo três faculdades: memória, razão e imaginação, que divide o mundo literário em eruditos, filósofos e criadores.



No cap. Visão Fiel do livro A INVENÇÃO DA LIBERDADE, Jean Starobinski diz que quem quer ter razão no século XVIII, invoca a natureza e se coloca ao seu lado. E se perguntava: O que é natureza? O que é imitar?
O século XVIII tem uma nova consciência da natureza, diz Starobinski. O problema que será abordado é o da transformação do Conceito da Natureza, suas conseqüências para criação artística; O conceito de mimese no século XVIII, As poéticas que surgem no século XVIII produtos de posturas diversas diante da natureza e cultura.


NOVA CONSCIÊNCIA DA NATUREZA
O advento do conceito de espaço cartesiano: neutro, isotropo, homogêneo teve suas conseqüências. Dá ao século o impulso de sua feição relativista. O único ponto de vista único e supremo é o de Deus. O Espaço neutro é característico da ação transformadora da técnica.
STAROBINSKI levanta que o século XVIII se propõe a realizar o domínio do espaço: invasão utilitária do espaço pelo trabalho humano: comércio internacional, estradas, intercâmbio cidade e campo. A propriedade da Terra/ divisão desnatura; a posse transforma a natureza em objeto.
Com o deslocamento do interesse da filosofia (antiga) do ser, na filosofia do Século XVII e XVIII para o conhecer a natureza entra na ordem cientifica.
A ilustração se opõe à compreensão do mundo físico como pura extensão (Descartes) ou absoluta ordem geometrizada (Spinoza). Diderot diz:
“As ciências abstratas ocuparam por muito tempo, os melhores espíritos, com muito poucos frutos; ou não se estudou nada do que era importante saber, ou não se pôs nem escolha, nem foco, nem método nos seus estudos; as palavras se multiplicaram infinitamente e o conhecimento das coisas ficou para trás”.
D’Alembert por sua vez diz: “(...) Tendo de certa forma esgotado pelas especulaçòes geometricas as propriedades da extensão figurada, começamos por desenvolver-lhes a impenetrabilidade, que constitui o corpo físico e que era a ultima qualidade sensível da qual a havíamos despojado”. A geometria não penetrava nos fenômenos.
Assim, Starobinski coloca: deixa-se a geometria para procurar as ciências da natureza, renuncia-se à esperança de traduzir cada fenômeno por uma forma matematizada, para contentar-se em fazer minuciosamente seu inventário.
Espírito sistemático  Renuncia-se ao espirito do sistema, adotando-se um espirito sistemático que liberte a pratica e a experiência sensível da dominação da autoridade. Faz com que a natureza entre na ordem cientifica no século XVIII.
Substitui-se o propósito de tornar a natureza calculável e mecânica por um outro propósito de ordem - que Michel Foucault chama Máthêsis - Reduz-se o problema de medida aos de ordem; propõe-se a analise como Método Universal; A relação do saber com a ciência geral da ordem (MÁTHÊSIS), provoca o aparecimento de um certo domínio de disciplinas empíricas.
Desde o Barroco, a atividade do espírito não se move mais no terreno da semelhança ocupa-se em discernir: estabelecer unidades e diferenças. Este processo separa as ciências (razão) da História (memória). Separa o conteúdo e forma dos objetos do conhecimento (significante/significado). Foucault diz que a razão ocidental, a partir de então entra na “Idade do Juízo”.
Nome, teoria, gênero, espécie, atributos, usos, literatura - Lineu  A natureza é objeto de grandes debates, no século, que dividiram a opinião e a paixão dos homens, assim como seu raciocínio. Oposição entre a valorização ética da natureza (viagens, lugares, animais exóticos) e investimento, exploração, lucro. Oposição entre os que crêem na imobilidade da natureza (Lineu, Tournefort) e os que pressentem a grande potência criadora da vida, seu inesgotável poder de transformação.
D’Alembert diz que “as propriedades dos corpos da natureza possuem um lado puramente intelectual que abrem o campo para especulação do espirito” é por aí que se desenvolve toda a prática de Lineu que nomeia, classifica, hierarquize: espécies, usos, atributos e somente por ultimo coloca a litteraria (toda linguagem depositada pelo tempo sobre as coisas)  A memória/história.
Se o período é anti-historicista (predominante) esta história tem outro valor: O historiador é aquele que vê e narra a partir do olhar. Século XVII a tarefa do historiador era tratar com os documentos. No século XVIII - A história natural dirige um olhar minucioso sobre as coisas e transcreve. Não há intermediários, documentos arquivos, mas espaços claros. O gabinete de história e o jardim expõem as coisas em quadro.  sentido: a visão
Jardins  Paralelamente ao progresso da ciência no século XVIII, os jardins ingleses proliferam-se celebrando a “Bela Natureza” - duas maneiras opostas e complementares de aprender a natureza. O jardim funcionava como um microcosmo em que a Terra inteira e se encerra (...) Todos os lugares, todas as épocas, todas as arquiteturas estão nele. No jardim a natureza é domada porém é conservada - “O instante eterno.” O jardim é uma região de memória (STAROBINSKI, 1994, p. 221).
Rosseau no livro Nova Heloísa diz “não vejo em nenhum lugar o menor traço de cultura ... não vejo sequer um passo de homem, a idéia de ilha deserta que o jardim lhe dá”. Rosseau prefere retornar os homens que a natureza. O cap. Idílio Impossível STAROBINSKI diz  Natureza o lugar tradicional do idílio torna-se o lugar do conflito: o desenvolvimento da técnica, os exploradores, os proprietários de terras contra filósofos, artistas.
Tanto em relação à ciência quanto à história da natureza o sentido que guia o conhecimento é a vista. Diderot diz que no século XVIII um cego pode ser geômetra, mas não será naturalista.
Em síntese, o conhecimento no século XVIII é ordenação - Máthêsis, taxonomia, gênese - juízo, ordenação quantitativa e articuladora dos objetos, ordenação cronológica.
Voltando à VISÃO FIEL, o Universo, no processo de apropriação pelas imagens: desenhos, pinturas, e arrolado em espécies, indivíduos como no olhar do naturalista e do proprietário diz STAROBINSKI. Essa imitação da natureza é considerada trabalho mecânico e não arte. “Não basta imitar pacientemente a natureza é preciso que o objeto fale ao nosso sentimento” .


Conceito de Natureza na Arte
Convivem no século XVIII, dois conceitos de natureza. O conceito de natureza como expressão ideal, não individual onde a beleza é a perfeição figurada e visível na matéria. Há, ainda, o conceito de natureza que tende a imperfeição de cada espécie, para cada objeto. Não é o tipo central que será o testemunho da intenção criadora da natureza é o indivíduo ou o monstro.
Mas, prevalece a noção de uma natureza como uma intenção que visa criar diferenças, e não tipos específicos. Não há criador superior ao poder criativo da natureza. Neste sentido, o homem objeto central do conhecimento a partir de então participa “das intenções permanentes da natureza”
Goethe afirmava que o artista é o agente através do qual a natureza procura produzir suas obras primas. A arte é o meio pelo qual a fugaz beleza natural torna-se forma durável.
A arte é atividade sintetizante guiada pelo pensamento que tornava visível uma realidade abstraída de nossa percepção diz STAROBINSKI. Por isso, a obra de arte não deveria ser nem uma replica exata do sensível, nem uma invenção arbitraria. Não se preocupa com a idealidade do seu objeto representado pela preocupação com o ato criador e o poder de construir coisas belas. A verdadeira singularidade reside na consciência do artista. A liberdade do criador deve coincidir com a necessidade universal. A arte é o prolongamento humano de uma fecundidade cósmica.
Ao gênio é atribuída a responsabilidade de acrescentar o mundo ao mundo habitual. Kant diz “O gênio é a disposição nata do temperamento através do qual a natureza impõe uma regra a arte” (O artista criador de uma realidade sem precedentes vai reivindicar autonomia). Na Alemanha se diz que se passa com facilidade do gênio ao demoníaco (A questão dizia respeito se o fato deste não respeitar regras conduzia sempre à liberdade??). Por isso o conceito de gênio proclamado no século XVIII convive com a colocação de regras. De qualquer modo, o final do século irá renascer o mito de Prometeu, com o que a nele de esforço heróico e de revolta contra as prerrogativas da divindade. O gênio transmite vida àquilo que toca.
Na Enciclopédia (discurso preliminar de D’Alembert) “Memória, Razão e Imaginação” são as três faculdades do conhecimento humano. Razão e imaginação são filhas da memória. A organização de sua arvore enciclopédica obedece ao processo natural das operações do espirito.
A imaginação depende da razão porque antes de criar o artista concebe/pensa. Na criação de objetos, a imaginação depende da memória, porque somente imagina objetos semelhantes aos que conhece (idéias e sensações).
As Belas Artes são produtos da imaginação. Na imitação da natureza, a invenção está sujeita a regras, que formam principalmente a parte filosófica das Belas Artes. A invenção mesmo é obra do gênio, que prefere criar a discutir. Incompatibilidade entre conteúdo e prática.
A imaginação no século XVIII não é mais o lugar do erro (semelhança), nem sequer a louca da casa desde que siga regras de utilidade e bom-senso. “A veemência é loucura”.
A imaginação são colocados limites desde de regras ao desvio destas: “Quanto mais longe da semelhança mais próximo de excelência”.

Arte Como Imitação da Natureza
A mimese não era um conceito unanime no século XVIII: Conceito recuperado no século XVII, teorizado por Aristóteles diz que a arte imita a natureza.
As “Belas Artes” estão situadas na prática que toma suas leis do gênio. Dando assim certa preeminência as artes mecânicas sobre artes liberais. Diderot prefere a pratica, pois esta apresenta dificuldades, propõe os fenômenos - teoria explica os fenômenos e elimina as dificuldades.
SHAFTESBURG - (Doutrina aliava empirismo e platonismo) tinha a idéia que arte é criação e não imitação. O artista é considerado um outro criador, um Prometeu.
VICO abandona o conceito de mimese e explora o conceito de fantasia, atividade especifica do fenômeno artístico, irá considerá-la como fonte de criação poética.
A mimese do classicismo racionalista do século XVII não era uma imitação naturalística, mas antes uma poética de cunho idealista. O importante não é o naturalismo da natureza (empírico, tangível, pitoresco), mas seu sentido intimo, profundo, o qual reflete uma natureza humana idealizada. Em BOILEAU (século XVII) o modelo é a forma bem sucedida.” ... de uma palavra bem colocada reduziu as musas as regras do dever” diz um texto.
Para Diderot, (se a natureza não é Deus) a imitação procede da natureza, mas no entanto não se deve imitar a verdade, mas o verossímil. Deve-se escolher da natureza o que vale a pena ser reproduzido. O trabalho do artista é, pois, tornar belo o mundo sensível pela transformação de um modelo ideal captado do real, na natureza.
A concepção de Diderot afasta-se da concepção determinista da mimese, para afirmar que a arte é seleção, e busca de um ideal guiado pela sensibilidade do artista.  que são responsáveis pela beleza da obra de arte.
“A natureza que os homens percebem com os sentidos, apreende com o intelecto e transformam com a ação”.
STAROBINSKI diz, então, que o idealismo clássico vai ser repensado, modificado, em sua acepção intelectualizante e orientada num outro sentido.


(1751) D’Alembert no discurso Preliminar (pág. 41)
A imitação da natureza tão conhecida e recomendada pelos antigos é a imitação dos objetos capazes de excitar em nós sentimentos vivos e agradáveis consiste em geral, na “Bela Natureza”. Sobre ele tantos autores escreveram sem dar uma idéia precisa, seja porque a bela natureza só é percebida por um espirito refinado, seja também porque nesta matéria os limites que distinguem o arbítrio verdadeiro não estão bem fixados e deixam algum espaço livre à opinião” Continua D’Alembert na arquitetura e imitação da “Bela Natureza” é menos impressionante... A arquitetura limita-se a imitação pela agregação, pela união de diferentes corpos que usa a disposição simétrica da natureza que contrasta com a variedade do conjunto. (Discurso Preliminar pág. 43)
Milizia (1781) - Diz que a arquitetura é uma arte de imitação como são todas as artes. A diferença é que as últimas têm, em alguns casos, um modelo natural sobre o que basear seu sistema de imitação. A arquitetura carece deste modelo, mas a indústria natural dos homens ofereceu um modelo alternativo quando construíram seus primeiros alojamentos. O método que Milizia propunha era a imitação “para nosso uso e para fazer uma seleção de partes naturais perfeitas, que constituem um conjunto perfeito, como não se pode falar em natureza. A natureza nunca forma um conjunto perfeito” (para ele). Os produtos perfeitos surgem das escolhas feitas pelos homens de gosto e de talento.
Estes escolhem e combinam do modo mais adequado para seu objeto, e forma com ele um todo medido que chamamos “Bela Natureza”. Para Milizia os períodos de decadência da arquitetura adotou a dificuldade de reconstruir este modelo original, princípios gerais, constantes, e positivos

A Bela Natureza
A bela natureza não tem obrigação de produzir conhecimento; é o livre jogo da imaginação e o entendimento. É a própria experiência do prazer estético. Kant diz que é como se a natureza manifestasse a presença das marcas da arte. Tanto a cabana primitiva de Laugier e a bela natureza de Milizia (eram produtos de imaginação)
O papel dos antigos  STAROBINSKI, lembra que na relação-oposição entre ideal e sensivel, as buscas dos “modelos” nem sempre passavam pela natureza. Alguns persuadidos que os antigos foram os únicos a perceber o ideal, fazem deles seus mediadores.
Winckelmann diz que o estudo da natureza é complexo. O estudo, a síntese, a escolha já foram feitos pelos antigos. Os modelos gregos eram os mais belos, fizeram a síntese na sua arquitetura de traços dispersos na natureza. E não se contentaram em representar a natureza, criaram uma outra, a beleza mítica (deuses).



Vida, Critica e Conhecimento
No século XVIII, as poéticas, assim chamadas devido seu anti-historicismo e anti-estilismo, são produto da confrontação entre natureza e cultura do seu tempo.
As pesquisas filosóficas desde o século XVII resultaram na separação entre conteúdo e pensamento da obra artística da forma artística propriamente dita.
A arte era subentendida como um conjunto de recursos que poderia obter efeitos num público delimitado socialmente (Ribon). Este aspecto retórico da arte fez com que o estilo alcançasse um valor em si mesmo no século XVIII. Num 1o. momento o decoro transforma-se num jogo de truques: Rocaile, Luis XIV, Luis XV.
Por outro lado, posteriormente, a história marcada por uma “tensão imanente” permite a convivência de Barbarie e cultura.
O gótico sobrevive, considerado bárbaro e poético. O prazer negro encontra sua forma. É confronto do nacional pelo universal iluminista. Nos jardins, “o universo reunido” modelos chineses, góticos, egipicios, clássicos convivem com conchas, pedras, formas orgânicas. O capricho da invenção orgânica contra a força e finalidade do sublime.
As poéticas que surgem (sublime e pitoresco) se devem a convicção de que preceitos estabelecidos racionalmente, deveriam, ao mesmo tempo, controlar e dirigir as tendências espontâneas do artista - seguindo limites prescritos tanto da realidade externa (natureza/cultura) quanto interior (natureza humana)
STAROBINSKI diz que o público exigia verossimilhança nos quadros e desenhos. Os salões do Louvre oferecem ocasião para julgar, discutir. Vê-se nascer a critica de arte: uma livre apreciação do mérito das obras formuladas por amadores esclarecidos. Até então as academias haviam atribuído a si próprias o direito do juízo artístico (1737). Diderot transforma a critica num gênero literário.
Para ele o critério da verdade era a experiência. Afinal a própria arte está no reino da experiência é por esta que o critico deve se orientar - deduzir no exame das obras aquilo que é seu fundamento comum (a natureza humana).
STAROBINSKI, Jean. A Invenção da Liberdade. São Paulo: EdUNESP. 1994.
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995
D’ALAMBERT. Discurso Preliminar da enciclopédia.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

A HISTORIA DA METODOLOGIA DO PROJETO


Texto de Giulio Carlo Argan
Tradução: José Eduardo Areias
Revisão: Profª. Drª. Regina Meyer.
Publicado pela Revista Caramelo 6. FAU/USP

Para mostrar o que é projeto, seria muito fácil responder: “é o método para a produção arquitetônica”. Esta resposta, no entanto, não estaria completa, porque sabemos muito bem que o projeto é já uma imagem realizada. É possível conceber um programa expresso com palavras, com cifras, ao passo que o projeto é já uma imagem feita visando uma execução técnica. A partir desta conotação fundamental, podemos dizer que o desenho, o projeto, é a relação direta entre uma atividade puramente intelectual e uma atividade manual. Entre uma atividade individual e uma atividade que é quase sempre uma atividade coletiva, o projeto não é somente um procedimento presente em todas as artes. Vocês sabem muito bem que desde o século XV, desde Leon Batista Alberti, as artes não são mais consideradas como diferentes atividades técnicas, mas como uma atividade intelectual única, que tem ramificações tais como a pintura, a escultura e a arquitetura. A idéia de projeto – a idéia de desenho, porque evidentemente todo projeto é desenho e todo desenho é ao menos virtualmente um projeto – leva necessariamente a considerar a amplitude desta idéia de projeto arquitetônico. É um pouco o símbolo ou o modelo de uma atividade de projeto, de uma vontade de projeto que se manifesta, não somente nas artes, mas em todas as atividades humanas, em toda a cultura. Sabe-se muito bem também que esta não é uma condição que existiu desde sempre. Há um corte muito preciso entre um período onde os projetos não eram separados como momento intelectual e execução, e um momento onde, ao contrário, houve esta distinção – meu jovem colega o disse – Brunelleschi!
Que acontece então? É que com Brunelleschi e a cultura humanista de seu tempo começa o que nós podemos chamar uma cultura, talvez uma civilização do projeto, que tem seu desenvolvimento maior no século XVIII, no Século das Luzes, quando toda a cultura é considerada como um projeto, um projeto de cultura – não há cultura que não seja um projeto de cultura – e a atividade de projeto é considerada como fundamental, estrutura para toda a atividade humana. Na política, o resultado evidente é a Revolução Francesa no final do século XVIII; na ciência, sabemos o que representam as mudanças de metodologia na pesquisa; na filosofia, não se tinha mais filosofia do universo, uma cosmologia e uma teologia, mas uma análise do pensamento humano.
Estamos em um momento onde devemos constatar uma crise do projeto na arquitetura, na produção industrial, em todas as atividades humanas, e nós devemos nos perguntar o que esta crise quer dizer, quais são as perspectivas de solução que apresenta. A cultura dos projetos veio depois de um outro tipo de cultura, que era uma cultura modelo. Há uma diferença notável entre a idéia de projeto e a idéia de modelo. Um modelo pode apenas ser imitado e a atividade que imita é uma atividade de reprodução, é uma atividade de reflexão; e temos por outro lado uma cultura que é transgressão e transgressão de si mesma. Então, nós podemos muito bem dizer que a cultura do projeto representa o fim de todo o principio de autoridade na cultura e o fim, por conseqüência, de uma concepção da arte como imitação, como mímesis. É portanto, o fim da arte clássica e o inicio da cultura moderna.
Procuremos saber quais são os componentes do projeto.
Nós temos uma primeira camada, um primeiro estágio, que é a analise e a critica do existente. É possível conceber uma idéia de projeto que não seja a critica de um tipo que exista, de tipos que existam. Talvez a única forma de projeto sem uma analise previa ou critica do que é existente seja a criação, a criação enquanto criação mais que humana, ao passo que numa concepção humanista e muito clara é absolutamente evidente que não se procura fazer um projeto que não seja um projeto de mudança de qualquer coisa que exista.
Uma critica – o que é uma critica? Dissemos que o projeto supõe uma analise critica do existente. Mas como se realiza esta crítica? É claro: dividindo em categorias.
Trata-se de começar a criar, a formar categorias do existente, distinções entre grupos de coisas existentes. Como sustentamos a infinidades das coisas que dispomos dentro da mesma categoria? É evidente: pelas afinidades, pelas características que são comuns a todos os fenômenos desta categoria. E, assim, iremos colocar de uma forma ainda embrionária o problema da tipologia. Quando dividimos o existente em categorias, estabelecemos uma primeira tipologia. Dividimos os tipos que têm características estruturais semelhantes, análogas, e que admitem variantes dentro de certos limites, que admitem por sua vez um certo leque de variantes. Dissemos que a cultura do projeto se opõe a uma cultura do modelo, vai além de uma cultura do modelo: qual é a diferença entre tipo e modelo? Nós a encontramos muito claramente apresentada no dicionário de arquitetura de Quatremère de Quincy. Era evidente um homem que estava ligado ao pensamento do Século das Luzes e que nos diz: um modelo é uma forma que devemos reproduzis tal qual ela é. Um tipo é uma estrutura que dá a possibilidade, não apenas a possibilidade, mas a necessidade de variantes, pois o tipo não tem uma determinação formal, nós devemos lhe dar esta determinação formal. Então, o tipo não é uma espécie de protótipo platônico mas, Quatremère é muito preciso sobre este ponto, é a dedução que fazemos de caracteres comuns entre os objetos de mesma categorias. Por exemplo, se queremos saber o que é o tipo do templo circular, devemos pegar todos os templos circulares que conhecemos, fazer uma comparação entre eles e isolar as características que salientamos em todos os exemplos tomados. Evidentemente, não se deduz um templo circular de uma certa quantidade de templos circulares, mas podemos deduzir constantes, tais como proporções, constantes no número de colunas, constantes nas relações entre as colunas e as outras partes da arquitetura; é uma analise que estendemos a todos as objetos. Mas o que é esta analise? Esta analise destrói a característica especifica de cada objeto para isolar uma função, uma tipologia que está sempre em relação com uma função. É sempre a idéia de uma função relacionada a um espaço, e que não tem uma determinação formal em si. É o momento que considero como fundamental no processo de projeto. É o momento onde a experiência histórica é inteiramente levada a cabo, terminada. Percorremos, por assim dizer, todos os templos circulares para isolar esta imagem de templo circular. Mas então, nos encontramos diante de uma forma que não o é (que n’em est pás une) ou, para melhor dizer, uma forma inteiramente vazia, e procura-se preencher este vazio por meio de uma hipótese, a hipótese de um templo circular que tenha todas as características de todos os templos circulares, mas ainda esta especificidade formal que cada templo circular tinha em si. Tem-se então um novo estágio do projeto, que é, depois da análise, a hipótese.
Mas muitas hipóteses são sempre possíveis, e então deve-se fazer uma comparação destas hipóteses, para finalmente eleger uma delas. Qual? A hipótese mais realizável, pois evidentemente, depois do projeto deve-se passar necessariamente à execução. Ao dizer amais realizável, não penso nas técnicas ou nos meios, ou nos procedimentos técnicos, nos materiais, mas penso sobretudo na realização de qualquer coisa, nos acabamentos. Eis porque pode ser escolhida por um arquiteto a solução mais utópica. Mas tomemos um exemplo somente: vocês se lembram, sem dúvida, que houve um 1919 na Alemanha o November-Gruppe, o Grupo de Novembro, com Taut, Gropius, Behrens. Eles apresentaram uma hipótese utópica – a Arquitetura Alpina – que era evidentemente a menos realizável e amenos provável dentre todas. Mas então eu lhes coloco ainda que numa Alemanha que estava numa crise terrível depois da derrota de 1919, a coisa mais necessária à cultura era a utopia, a ilusão utópica da qual nasceu, como sabemos, o racionalismo. Gropius era um dos artistas, um dos arquitetos do November-Gruppe, e o criador do racionalismo alemão.



Procuremos então ver em síntese estas camadas ou estágios dos quais lhes falei. Nós temos primeiro os conhecimentos históricos; eles são necessários, evidentemente, se devemos fazer uma comparação: diante da tarefa de fazer um templo circular, devo conhecer toda a experiência constituída de templos circulares. Temos então uma primeira camada: o conhecimento histórico. Uma segunda, a análise; uma terceira, as críticas; uma quarta, a imaginação, e eis que, ao dizer a palavra imaginação, já estabelecemos uma relação com a primeira, o conhecimento histórico. O que é um conhecimento histórico? O que é historia? A historia é antes de tudo a memória. O que é a imaginação? A imaginação... o que é a memória? É a imaginação do passado. O que é a imaginação? É a memória da posteridade.
Eis então que se desenha completamente este ato, esta trajetória do projeto, qie é a mesma da memória À imaginação. Da memória à imaginação quer dizer: daquilo que nos lembramos àquilo que prevemos e desejamos.
Eis estabelecida uma outra relação entre – dentro do projeto – a memória, a crítica, a ideologia, a previsão da posteridade. Um problema surge imediatamente: será que estamos autorizados a projetar? Quer dizer, quando se projeta faz-se alguma coisa agora para uma posteridade que está talvez um pouco distante. Mas será que tenho o direito de determinar as condições de existência de gerações futuras? Quando se examina a crítica que se faz hoje, como por exemplo na produção cultural da sociologia americana, temos uma discussão sobre a cientificidade do projeto; afirma-se: o projeto não tem nada de cientifico, pois sabemos muito bem que as coisas se darão de um amaneira totalmente diferente do modo como as projetamos. É bem verdade. Mas nós todos, quando projetamos, temos a necessidade de pensar a posteridade para a existência de hoje, para dar à existência de hoje uma dimensão a respeito do futuro.
Mas então vocês compreendem muito bem que o projeto não é algo que se saiba, que se imponha: o projeto é um projetar contínuo; não é possível conceber a idéia de um projeto que seja côo uma espécie de gravura de cobre, sobre a qual pode-se imprimir uma folha de papel da qual se obtêm uma imagem. O projeto é um projetar contínuo, é exercer sempre uma crítica sobre a existência, e supor qualquer coisa de diferente e evidentemente melhor. Eis porque se pode muito bem dizer que todo o projeto pressupõe uma idéia de valor. Sem que se tenha uma idéia de valor, não se pode projetar; mas se colocarmos uma idéia de valor como meta à qual queremos atender, então está claro que não podemos conceber o projeto sem uma finalidade, sem um finalismo, sem uma concepção teleológica da existência. Vocês sabem muito bem que na historia da época moderna, passou-se de uma fase durante a qual a finalidade última do homem era a salvação, a redenção, o paraíso, para uma outra onde se procura ter o bem-estar sobre a terra. Pode-se dizer que o projeto é um finalismo que podemos qualificar como laico, porque ele procura realizar o valor dentro do horizonte da existência e ano além deste.
Mencionamos um problema importante, o problema do valor, e vocês sabem muito bem que, hoje, a idéia e de valor foi colocada em crise. A mesma crise que a idéia de projeto, evidentemente, porque, se não se pode conceber um projeto sem uma idéia de valor, não se pode conceber o valor sem o projeto de alcançá-lo. Como podemos justificar esta idéia de valor? Eu não quero entrar aqui em uma discussão filosófica, e me limito a dizer que o valor não é algo que está ligado Às coisas, mas uma atribuição de significação que se dá Às coisas. Se não compreendo nada de pintura, se sou completamente alheio À pintura e se me mostram um quadro de Rafael ou um quadro de Cézanne, isso não terá nenhum valor para mim. Isso só assume um valor no momento em que seja eu quem lhe atribui um valor; assim, podemos dizer que o projeto é um procedimento de valorização. Um processo, uma sucessão de ações de valorização.
Imaginemos que se possa realmente conceber um projetar continuo, sem fim: mesmo assim, este projeto deixa traços. Se ele não deixasse traços, ele não teria nenhum significado, nenhum valor; mas estes traços, o que são? Como os chamamos? Objetos, é claro. Uma casa foi projetada, é um objeto. Uma mesa que foi projetada, é um objeto. Nós já falamos (e são palavras muito semelhantes) de um projeto que produz objetos. É uma dedução muito evidente, que se verifica neste tipo de verbalização projeto/objeto. São palavras que têm raiz comum, o que determina uma primeira ligação: projeto/objeto. Gostaria de lhes perguntar se seria indiferente dizer coisa em lugar de dizer objeto. Não. Se eu digo que um projeto produz um objeto, compreende-se muito bem o que eu quero dizer; mas se eu dissesse que o projeto é uma coisa que produz outra coisa, vocês não me compreenderiam: uma coisa pode ser uma panela, por exemplo. Portanto, o objeto é outra coisa. O objeto é qualquer coisa que é definida por, e ao mesmo tempo define o sujeito. E, assim, acrescenta-se uma terceira palavra: projeto-abjeto-sujeito. Mas o que é o sujeito? O sujeito é aquele pelo qual uma coisa é um objeto. Um objeto é uma coisa que é realizada, feita, organizada por um sujeito. E ao mesmo tempo em que defini a individualidade do objeto, o objeto definiu minha individualidade. Eu sou um indivíduo enquanto sujeito, sujeito enquanto penso um objeto. O objeto existe porquanto tenha sido projetado. E, então, dizemos que o projeto é o procedimento pelo qual se estabelece uma relação, e uma relação dialética entre objeto e sujeito.
Vocês estão aqui em uma escola de arquitetura para tornar-se arquitetos, mas o que vocês farão tornando-se arquitetos: estabelecer relações entre objetos – as casas das quais vocês farão os projetos – e os sujeitos que serão os que viverão nas casas que vocês terão projetado. Sua tarefa é evidentemente estabelecer as melhores relações possíveis de modo que o individuo sinta-se inteiramente livre, que o sujeito seja livre dentro do objeto, seja libertado pelo objeto, quer dizer, que haja entre o objeto e o sujeito uma relação de integração em lugar de haver uma relação de alienação.
Agora que estabelecemos esta espécie de trindade ou tríade projeto-objeto-sujeito, dizemos que esta trindade é a trindade de nossa cultura enquanto cultura não dogmática. Dizendo não dogmática, eu digo critica; dizendo crítica, eu digo laica; dizendo laica, eu digo liberal, dizendo liberal, eu digo democrática. Eis porque o projeto é um procedimento que tem seu valor, sua significação dentro de uma cultura racionalista e democrática, e que não tinha absolutamente o mesmo significado em uma cultura da autoridade e do poder. Nós temos o exemplo, o grande exemplo de Gropius e da Bauhaus, que, como se sabe, foi a maior escola de arquitetura da primeira metade do século e ao mesmo tempo a primeira escola fundada sobre uma estrutura democrática, que estabelecia relações democráticas entre os mestres e os estudantes, tendo sido concebida como uma sociedade de informação, como uma sociedade real que realizava de uma maneira contínua seu projeto de desenvolvimento.
Neste momento, creio que devemos nos deter um pouco, como eu lhes disse antes, sobre o argumento do nosso colóquio “projeto e a história”. Um projeto é sempre um procedimento de reutilização. Nós não podemos não ter consciência de uma realidade dentro da qual nos encontramos.
Para falar deste processo de reutilização, em lugar de fazer filosofia, recorrerei a um poeta: Mallarmé, por exemplo, deu um som novo à palavra “atributo”. Não se pode ter medo de considerar a sociedade na qual trabalhamos, como um tipo de atributo que deve sempre mudar a significação das palavras. Nós o sabemos desde Cassirer, com sua filosofia dos símbolos, que são as palavras que criam as coisas, e não as coisas que criam as palavras. Nossa tarefa enquanto pessoas que fazem projetos, não somente de arquitetura, mas projetos todavia, é de dar sempre novas atribuições de valor: quando a obra de arte que estava numa igreja ou no palácio de um rei torna-se objeto de museu, é evidentemente uma nova atribuição de valor.
Esta atribuição de valor nos coloca problemas bastante sérios, problemas de método, porque nós trabalhamos, nós existimos em cidades, as cidades que são produtos das técnicas urbanas, são resultados, artefatos que podemos considerar da mesma categoria que as obras de arte. A própria cidade é idealmente uma obra de arte.
Agora, coloca-se um problema que eu gostaria de chamar de restauração de projetos. Todo arquiteto que trabalha com uma deontologia de sua disciplina, e não para ser simplesmente o técnico da especulação básica, todo arquiteto que trabalha com uma consciência de sua disciplina, trabalha com a finalidade de inserir um texto em um contexto: ele deve procurar esta relação que dá coerência, que realiza uma coerência. Imaginemos, por exemplo, um filólogo que procurasse restabelecer um texto grego do qual perderam-se muitas palavras: não seria possível inserir uma palavra que tenha contexto; deve-se inserir uma palavra que tenha uma significação.
A cidade é evidentemente um contexto, isto é, um conjunto de textos que realiza um contexto. Devemos reconhecer então que esta crise da qual falávamos, a crise do projeto, a crise do valor, a crise da finalidade, é também a crise da cidade, e estamos em um momento onde a crise da cidade tem características muito graves pois, como se sabe, ao mesmo tempo em que criticamos a construção moderna, a cidade e a civilização industrial como estando fora das medidas humanas, temos diante de nós o fenômeno das cidades que nos últimos anos multiplicaram sua população até chegar a dez, quinze milhões de habitantes, o que quer dizer não poder organizar uma comunidade, o que quer dizer remover a razão de uma raiz histórica comum aos habitantes. São problemas que se colocarão sempre de um modo mais grave no futuro, e, então, devemos refletir ainda um instante sobre o problema da arquitetura e do urbanismo, que está ligado justamente ao problema do projeto da história.
Considera-se geralmente que o urbanismo é uma condição para a arquitetura. Pode-se ter uma solução urbanística satisfatória e mesmo boa, com uma má arquitetura. O que não é possível é o contrário. Não se pode ter uma boa arquitetura em um mau contexto urbanístico. Mas, sobretudo, chegamos hoje a uma situação onde não é mais possível estabelecer uma distinção entre arquitetura e urbanismo: não há mais arquitetura colocada (depositada) em um conteúdo urbano. O urbanismo deve tornar-se a arquitetura, ser interno ao projeto de arquitetura com uma dimensão nova e uma escala inteiramente nova, mas sempre projetando a história.
O que é que quer dizer fazer a história? A história é simplesmente (e quero dizer as coisas da maneira mais simples possível) conceber o passado como tendo resolvido as contradições da sociedade do seu tempo. Agora nós podemos ver o passado com as contradições resolvidas, e, se queremos fazer projetos que sejam coerentes com a idéia de história, coerentes com a idéia de crítica, a idéia de história e a idéia de crítica sendo idéias estruturais da cultura contemporânea, o primeiro passo é estudar, reconhecer as contradições da sociedade na qual vivemos.
O arquiteto pode fazer um projeto com sua reflexão sobre a história, procurar chegar a uma situação dramática, que contenha contradições flagrantes da sociedade, uma condição de equilíbrio. Evidentemente as condições de equilíbrio não são eternas, e eis porque as condições de equilíbrio não se realizam, mas é sempre possível procurar realizar uma eliminação das contradições. E procuramos resolver as contradições: é evidente que pensamos que todas as contradições da realidade têm uma solução, a qual trata-se de encontrar, de considerar possível, é por isso que o projeto não pode ser tão simplesmente um exame dos dados objetivos e um cálculo das resistências dos materiais ou do preço dos materiais em relação à disponibilidade financeira, mas um fator de intervenção ativa na realidade para resolver as contradições existentes.
A crise do projeto, isto é, o motivo pelo qual se diz que o projeto não é científico, que a história não é científica, que a historia não dá uma imagem verdadeira da realidade, é que a história é o domínio do provável. Penso que o fator de ser a história o domínio do provável é justamente o que pode nos assegurar que ela seja verdadeiramente o conhecimento do real; e realista, porque é sabido que na existência individual e social há muito mais de provável que de certeza. É verdade que a história é a ciência do provável – eu aceito esta definição; o que eu recuso é a idéia de que o provável não seja real.
O novo não-valor que opomos ao valor do projeto é o programa. Porque o programa não se configura como valor? Pelo fato do programa não ser o resultado de uma crítica; o existente poderia ser um projeto, mas é apenas um esquema de um desenvolvimento quase automático de uma tecnologia que é agora capaz de projetar, de projetar-se a si própria; assim, fica evidente que entre a idéia de programa e a idéia de progresso há uma antítese. Não é verdade que o projeto representa os detalhes no interior de uma linha geral, de um programa geral. A diferença é fundamental. O projeto exige, obriga a um controle sobre o executivo, e pode ser mudado. Quantos projetos de arquitetura. Cuja execução durou anos, algumas vezes séculos, submetendo-se a toda uma série de mudanças do projeto inicial. O projeto pode ser mudado como cada um de nós pode mudar seu comportamento segundo as circunstâncias do real. Mas o programa, ao contrário, não aceita ser mudado, porque o programa é uma espécie de automatismo que é alheio à vontade humana, e se diz que é o produto de uma tecnologia moderna. É o computador que programa. Mas eu não estou aqui para fazer polêmica contra os computadores pois isto seria idiota, isto seria como fazer a apoteose da bicicleta contra o automóvel ou o avião. Gostaria, ao contrario, de refletir sobre estes problemas de um automatismo, estas possibilidades de nova tecnologia de criar mecanismos capazes de se corrigir. Digo que o automatismo não é uma realização da consciência como o projeto, mas, ao contrário, é realização do inconsciente. São coisas que podemos ler hoje na maior parte dos textos sobre cibernética e outros da mesma categoria, que nos dizem: mas por que se aborrecer projetando, estudando, se há computadores que organizam tudo para a existência humana? Na Idade Média dizia-se: mas por que fazer as coisas, procurar realizar coisas, se há Deus que faz tudo por nós? A filosofia da comunicação de massa nos diz ainda que, hoje em dia, na realidade, não é necessário fazer projetos e nem mesmo ter utopias, pois a tecnologia contemporânea realiza muito mais rapidamente que a imaginação. É inútil ter imaginação se há um aparato tecnológico que produz imagens, e que nos oferece imagens para consumir em uma quantidade tal que a imaginação tenha uma atividade somente de recepção e não de atividade.
O problema está inteiramente aberto. É impossível saber o que se passará nos próximos dez, vinte, trinta ou quarenta anos, um século... O que nós podemos dizer é simplesmente que há duas possibilidades, dois caminhos, dois sistemas tecnológicos contemporâneos. O primeiro, seria o instrumento da civilização; o segundo, seria o instrumento de poder. Eis a antítese que hoje se coloca com uma gravidade excepcional, sobretudo, evidentemente, para os jovens que têm a existência à sua frente,e que devem saber que deverão trabalhar dentro de uma cultura e dentro de um sistema de informação de massa, e que este sistema de informação de massa pode ser a estrutura de uma civilização, isto é, o instrumento de uma civilização ou, então, o instrumento do poder. Creio que da resposta que se dará a esta questão irão depender muitas coisas, aquelas que chamamos a morte da arte, a morte do projeto, a morte da cidade, mas sobretudo aquilo que chamamos o fim dos valores. É ainda evidentemente possível fazer do sistema de informações,um sistema que não seja a decisão mecânica de uma cultura estabelecida, a imposição de uma cultura, mas que seja, ao contrário, um instrumento para organizar livremente a cultura. Aí está o dilema que temos hoje e que sobretudo vocês que são jovens terão diante de si para a posteridade. Desejo de todo o meu coração que a comunicação de massa, o sistema de informação de massa, a cultura de massa cuja realização está absolutamente segura e determinada – é impossível que isso mude pois já estamos em uma cultura de massa – mas espero que esta cultura de massa seja uma cultura da racionalização e da consciência, e não da inconsciência e do poder.

Giulio Carlo Argan


Este texto parte da transcrição literal dos registros de palestra que Giulio Carlo Argan proferiu no Departamento de Arquitetura da E.P.F.L. (École Polytechnique Fédérale de Lausanne), no dia 25 de maio de 1983, não tendo sido previamente redigido.
Por se tratar, então, de texto resultante de uma exposição direta, optou-se nesta tradução pela substituição de formas coloquiais por um estilo mais literário. Tal opção visou, sobretudo, criar uma miaos fluência para um discurso onde o tom coloquial é praticamente um recurso de expressão, o que não colocou diante da necessidade de um grande cuidado para evitar a perda do vigou do discurso original.
O original foi publicado pela École Polytechnique Fédérale de Lausanne, Departement D’Architecture Informations 61, Emregistrement de la Conférence du 25 mai 1983. L’Histoire dans la méthodologie du project, Giulio Carlo Argan.
O texto é parte de um trabalho de pesquisa de material de apoio a disciplinas do departamento de história da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, tendo sido levantado pela Profª. Marta Dora Grostein.

Uma entrevista final foi deletado neste post.